escreve a dolorida Eunice
Já sei que duvidas do amor que te tenho. Já percebi que sou pedra no sapato que o teu coração tem dificuldade em calçar. Pois, por ser um coração, e não um pé, não uma mão. Porém, sempre confessaste teres-te enamorado pelas minhas mãos, pelos meus pés, minhas pernas, meus braços, os ombros
(- Que delícia de pêssego os teus ombros
dizias, duro e erecto de paixão
- Tão formoso é o teu colo, Eunice
também dizias, enquanto já te diluías dentro de mim)
os meus ombros e o meu pescoço como a pele macia e plumosa do pêssego, o meu colo de imperatriz com cinquenta anos, três filhos gerei e, ainda assim, fazendo inveja às raparigas mais novas… O teu coração, Francisco? E o meu? Onde está o meu coração quando falas de mim?
Que sabes tu do esforço para te ter? Afastar-me da família que sempre foi o meu apoio, afastar-me dela para poder ter, ainda que momentaneamente, umas horas felizes contigo? Que sabes do esforço quando de ti me aparto para reconquistar o que tenho em casa? Preocupas-te com meu marido, cujo epíteto só lhe vale nas ocasiões sociais. Desde que me entreguei a ti, nunca mais ele me tocou, Francisco!
Por que me cobras? Que cabana ideal tens para me oferecer? Serias realmente feliz comigo se eu tudo abandonasse e a minha vida toda pudesse ser também a tua? Como acarinhavas os meus filhos crescidos? Ter-lhes-ias amor? Que tarde e serões confortáveis me darias? Como serias tu, preso a mim, nessa jura de só a mim esperares, quando pedes tanto, lacrimoso, que eu seja só tua?
A questão é essa, Francisco: eu ser de alguém. Já não quero ser de mais ninguém… ou seja: se me resta ser de alguém, que continue sendo de quem ainda se esforça por manter uma família, um lar, em ser pai dos meus filhos, o sustento da casa que acabou por ser tão minha como se cada divisão fosse réplica do quarto onde minha mãe me fez nascer…
Vais fazer o quê a essas outras com quem te envolves, quando da infeliz razão de me ausentar? Por que não sabes esperar quando esperas de mim uma total entrega? Acaso imaginas o preço dos hotéis onde te ofereço o meu corpo? Poderás imaginar o quanto gasto nas provas de roupa que te dou, nesses perfumes teus prediletos?
Consegues imaginar, meu amor, meu Francisco, o quanto desejaria ter-te só para mim? E que, quando saio resignada da tua companhia, toda a sombra de uma mesquinha solidão me envolve, ainda que, regressando a este lar, possa confirmar a saudade dos meus filhos? Ainda assim, quando sei que ficas furioso com as minhas promessas, que tanto me deitas à cara, dizendo que sou falsa
(mea culpa por não ter coragem de as cumprir),
consideras outras companhias quando não estou presente. Que coisa machista é essa de me chorares? Ora, Francisco, que sabes tu o que é chorar?
Diz-me: sabes? Que sabes tu? De mim, de ti, de nós, da vida, de tudo? Queixume em vão tens, Francisco! Talvez se me deixasses ser eu mesma, ser finalmente quem e posso ser, em vez de passar das mãos de um para outro, talvez haja esperança para nós no ano que mais logo se inicia. Até lá, sim, vou continuar aqui, onde me esperam, e querem que eu seja a esposa e a mãe.
Se outra coisa serei mal torça o ano, logo se verá. Estarás com vontade de receber o novo ano com uma mulher que nada te exigirá e muito menos quererá que dela exijas seja o que for?
Boas entradas.
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