a mentira




Perguntaram-me por ti. Ou seja, uma ex-amiga, ou conhecida, que não via há décadas.

Encontrámo-nos, por acaso, no supermercado, na correria entre escolher o mais fresco pé de alface e o detergente milagroso para a casa-de-banho. Foi aquela alegria temporária que se guarda na algibeira para ocasiões como esta: encontra-se uma pessoa que deixamos de ver e falar, que até nem queremos muito ver e muito menos falar, mas é sempre aquele instante da surpresa com explosão de confetes, como se fôssemos as melhores amigas. Dessas vezes, em que se diz, variavelmente,

- Temos de marcar um café!

quando nem café nem coisa alguma se deseja. Apenas… ora a expectativa de outra ocasião assim, ora a esperança de nunca mais.

A páginas tantas do episódio, após a hipócrita constatação de que os anos não passaram para cada uma de nós, ela perguntou:

– Então, o Eduardo?

e eu quedei-me por momentos confusa, sem saber bem o que “o Eduardo” significava, ou a quem ela queria referir com um nome que, naquele instante, não me dizia nada. Olhando-me com estranheza perante o meu estado de confusão, reforçou

- Eduardo, o teu marido!

E foi então que percebi que era sobre ti que ela queria saber.

Enquanto a criatura começou de rompante a divagar sobre momentos passados em que se lembrava de nós como casal, que eu praticamente nem ouvi metade, pensei como já estava quase varrido da minha mente o momento em que decidi sair daquela casa enfadonha há… cerca de vinte anos! E a forma caricata como, após estes anos, tu - o teu nome e tu - teres encalhado na minha memória como que num limbo, sem espaço próprio, a atrapalhar o caminho de outras memórias que nada têm que ver contigo.

De maneira que, quando rebusquei na mente e nela insurgiste, foi como quem revê um estranho e pensa: esta cara não me é estranha… Na realidade, reflectindo bem, a tua face, da imagem que ainda possa ter de ti, é bastante estranha. Faz parte daquele tipo de imagens que nos fica após um sonho atribulado. Alguém que não sabemos bem quem é, mas, no fundo, nos marcou de uma forma fortemente negativa.

Nada recordo como nos conhecemos e por que ideia decidi casar contigo – uma idiotice da juventude, certamente! Casamento que, salvo o erro, terá durado pouco mais do que cinco anos. Só me lembro mais dos últimos meses. O que é péssimo, sabes?

(obviamente que não sabes, nunca saberás)

porque, mesmo que não nos tivéssemos dado bem e nos termos separado, um casamento marca, ficam talvez as boas coisas, no mínimo… Porém, o que eu acabo por recordar com mais clareza foi que bastou aquela bofetada para nunca mais querer memórias tuas. Recordo vagamente as palavras ofensivas que proferiste, quando o que eu queria dizer-te era que estava com dores, porque tinha engravidado, e... E não me deixaste acabar.

«Antes dos meus trinta anos, nem penses em putos!», foi o que disseste após a bofetada. Curioso como é isto que bem mais consigo lembrar-me agora pois, infelizmente para mim e de acordo com a tua decisão de não ter filhos, eu tinha de facto engravidado, mas acabara de ter um aborto espontâneo, por isso as dores, as do corpo e as da alma. Sim, lembro do quanto sofri…

Pois, então, quem é o Eduardo?, indaguei eu enquanto a fulana continuava entusiasmada a contar o seu rol de vivências que nada me diziam. Foi tudo num repente. Memórias com dores confusas, um mal-estar que a princípio não entendi; depois, quando percebi da merda que era, e o quanto detestável já me parecia aquele reencontro com uma pessoa do nosso passado comum, suficientemente capaz de me reavivar o que sempre fiz por esquecer, a minha reacção

(o poder da mente de uma pessoa, urdir uma solução de escape em segundos para se proteger)

foi interromper aquela tagarelice e dizer-lhe, apenas, com total desprezo, a mentira que eu sempre desejei como verdade absoluta:

– Desculpa interromper, mas já estás a confundir-me com outra, pois eu nunca fui casada com um Eduardo!... 

Ela seguiu, com ar de parva, pelo corredor dos congelados, após uma despedida sem qualquer nota do entusiasmo inicial. Eu segui em frente no meu propósito: escolher a mais fresca alface e encontrar uma solução milagrosa para a casa de banho. É que, com a família que tenho – um marido a sério e três filhos lindos – fazer compras tem a sua ciência.


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(foto de autor desconhecido)

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