escrito e dolorido para eunice
E eu aflito com a exactidão dos ponteiros nos relógios, os ponteiros demarcando fronteiras. A nossa partilha tem fronteiras, Eunice. É um país em estado de sítio, com recolher obrigatório e sob a lei marcial. Porque dizem-nos que somos proibidos. Proibidos a partir do momento em que terás de tirar essa máscara de mulher livre e regressarás à tua condição de mãe exemplar de três filhos, da fiel esposa de um importante executivo qualquer que nunca soube bem quem é. Eu sou apenas o entretanto nas horas vagas, ou o depois nas horas em que te perturba a insónia – a consciência, o amor, o amor-próprio, Eunice?
O tempo no céu e nos relógios lutando contra o meu orgulho desmanchado, inerme. Porque os meus olhos para ti não trazem defeitos, não trazem preconceitos, só te trazem – tão egoístas! – a ti. Como posso aproveitar o momento se, milímetro a milímetro, como praga que alastra, vais deixando que outra vida te separe de mim? Os teus beijos agora são lamentos, tombam sôfregos e remediados na inclinação do meu ombro convulsivo. O teu corpo, poucas horas atrás baluarte da minha felicidade, recolhe-se em modos sorrateiros, possuído pelo medo, pelas palavras, pelos filhos, por eles: todos eles que não cabem entre o espaço que nos vai afastando, de promessas reatadas.
Magoam-me as promessas, Eunice. Magoam-me os teus dedos tacteando as lágrimas das minhas mãos. E magoam-me as noites. As tuas, as que te pertencem sem mim. Crê-me escrito e dolorido. Sou personagem de tragédia onde venham a caber as lamechices que te encantam, as fantasias que te orientam, que te movem – que te moveram até mim, que te moveram a conquistar-me? – enfim, que te construíram para mim.
Olha-me, Eunice: o céu apagou a tarde, a noite veio para te resgatar à norma. Vais partir? Fuzila-me, acaba comigo. Engole-me, Eunice. Para que o dia me não volte a nascer, grávido dessas mesmas e viciadas falsas promessas.
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foto de Tracy Pote
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