ainda escrito e dolorido para Eunice


Enquanto, pela tua janela, me viste largar a rua da tua casa, soaram as seis horas da tarde nesse relógio que tens na tua ampla sala. Esse relógio que me maça. Ou talvez me magoe, ainda não concluí. Que me aborrece, é certo: quando estamos juntos, em doces amores e modorras, é capaz de correr como o mais poderoso corcel. Já em circunstância contrária,

(a minha janela reflectindo o avolumar da solidão quando eu dentro das sombras e das chuvas com que o outono se instalou num rigor de inverno)

esse relógio deve agir como um caracol preguiçoso ou uma pedra pesada que só um vento furioso a levantará.

No entanto, é tão só um relógio, simples objecto mecânico, de roldanas programadas pelo distender de uma corda ou de uma bateria. Com o cariz de me contrariar quando nele ponho a minha mirada, sôfrego. Em conluio com a minha roupa, deixada ao acaso pela urgência dos nossos beijos e amassos, ambos alvitram que me querem da tua porta fora, porque urge o momento de descer aos solavancos pelo elevador antigo, arrastar a porta empenada da entrada do prédio, e confirmar que chove muito e faz cada vez mais frio.

Que fazes depois, Eunice? Recompões a sala, o sofá com as suas almofadas alinhadas, páras o Brel no gira-discos, ligas a tv num programa de festa ou noticiário, vais para a cozinha a congeminar sobre o que irão jantar? Quando foi que ele regressou?

Há-de regressar pronto, convencias-te. Para ires ficando só, a assistir também ao enovelamento das sombras sem mim, durante duas, três, quatro horas mais. Diz-me por que resistes em manter essa relação, como aguentas essa existência insignificante entre ambos? Recolhidos quase à média luz sem intenção romântica, ambos calados perante o gigantesco tilintar das colheres sobre os pratos da sopa – única refeição que conseguiste urdir após a minha partida…

Acaso ainda sorris, aquiescida, quando ele se levanta e, sem te pedir permissão, muda a programação da tv para um qualquer debate? Acaso ainda lhe aprumas a almofada, junto à tua, na cama que é a vossa e na qual há anos nos recusas

- No meu quarto não, Francisco, vamos para o outro

(a minha janela reflectindo)

deitados nas nossas horas de amor?

E quando ele

(finalmente? inoportunamente?)

assoma ao quarto para dormir, beijando-te a face num trejeito de quem parece que cospe

(tu aflita escondendo o telemóvel onde, instantes antes, recebeste uma longa mensagem minha; talvez isto que te escrevo, talvez outra coisa; talvez tão só o resumo numa foto minha, de tronco nu, farejando em mim o cheiro que deixaste no meu corpo)

num trejeito de quem cospe e te diz, soando o resmungo, boa noite até amanhã?

Que fazes então, Eunice? Valerá isso a pena, por pena nossa, pesarosa pena… Por que somos penitentes? De que castigo?

A minha janela reflectindo o meu remedeio. Procuro a imagem de ambos, nus – a selfie que fiz quando descansávamos do arfar dos nossos corpos, tu rindo com tamanha patetice, e eu orgulhoso porque, pelo menos assim, posso ter algo de ti, para além do cheiro, quando me despachas,

isto é,

quando aquele relógio que tens na tua ampla sala e que me maça, magoa, um simples objecto mecânico, de roldanas programadas pelo distender de uma corda ou de uma bateria que, em conluio com a minha roupa, me faz cada vez mais depressa longe de ti.

Disse-te, antes de sair, da minha vontade de usar a casa de banho. Menti, Eunice. Fui aonde ele tem as ferramentas que já não usa. Vi um martelo, meio enferrujado, e coloquei-o junto ao relógio

(- Que caralho faz o martelo aqui!?, terá ele perguntado, enquanto punhas a mesa para o vosso jantar de sopa).

É para que me faças um favor, Eunice: destrói o relógio à martelada. E se outra intenção tiveres para usares esse martelo, eu prometo ser teu cúmplice. Para sempre, Eunice, para sempre.



ler a primeira crónica - «escrito e dolorido para Eunice»
_
foto de Tracy Pote



Comentários