se ainda


Nenhuma pestana, as caídas são moliço para a terra volver. Se ainda tens lágrimas, é como a chuva que as tornam húmidas. Qualquer dia, nenhuma janela, só a música dizendo o que pensas. Por vezes, nem é preciso falar alto o que o pensamento admite. Por vezes, basta-te escutar a canção assertiva, e vais imaginando, como qualquer adolescente que admite ser o único a mudar o mundo, que és a superstar do momento, a dizer aquelas palavras no timbre que a música exige, entre o melancólico e o estupor. Sem janelas nem bolor escurecendo o canto do teu quarto que não recebe o sol, a enrodilhada roupa tecendo os teus momentos de pó, brilhando no canto oposto em fundo de abajur. E vais querer discernimento, para o que és, para o que entendem de ti. Lamenta o impossível. Se fores ver como há sol, cegas. Se fores abrir uma torneira para a sede, afogas. Que tens? Nada. Apenas queres ser quem tu és, mas nem tu te permites a tal. Sais de cena com o dever cumprido e surgem os apertos de mão, o teu ombro permitindo a pressão do braço de outros. Será que te entenderam, pelo menos esses, que se dizem e se manifestam tão próximos? É só um sonho, deixa. Deixa que os lençóis cubram o que há de mais nu em ti. Nenhuma lágrima, as que deixas rolar face abaixo são o orvalho antes de outro dia nascer. Qualquer dia, o nevoeiro «como porcelana branca» adentrando pela última súplica do telhado que reclama reforma há imensos anos. Antes que a chuvas se adensem, lembras a tua culpa, a tua falta, e decides, contra a vontade do corpo de sessenta e poucos anos, que é altura de fazer algo, antes que os sonos da adolescência acabem com o pouco que ainda tens, cinquenta anos passados.


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foto de Sergey Borisov

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