composição
Sinto-me bem a alinhar palavras, como carpideira que vela de ais um defunto, ou aquela bordadeira cansada de tão incansável bordar, fio vai fio vem, a paciência de uma e de outra, a nobre sensação do dever cumprido. E se estive eu ao comprido, três dias chorando sobre o lençol branco, a urina na vez das lágrimas que secaram, o tremor das pernas à beira do enfarte muscular, e o buraco no peito, oco da carne degenerando a combustão dos nervos, a loucura dos sonhos, os pensamentos como pedras caindo de um declive acentuado, as pessoas… as pessoas lá em baixo amparando queda tão improvisada, o espanto das suas bocas, moscas a entrar, os pontos de interrogação sem questão alguma: se eu estive assim, foi porque desgraçadamente as palavras se ausentaram, tal como gato assustado, gato que fugiu e regressou a casa após longa demora, a lembrar os soldados que inusitadamente vão à guerra porque alguém quis engrandecer-se de uma qualquer glória sonhada. E regressam, carregados de culpa e compulsão, em loucura de pressão pós-traumática. Os gatos ferem os homens. Portanto, eu sinto-me bem a alinhar as palavras, coisa só comparada aos transtornos por obsessão compulsiva. Se me tiram isto, sou menino para birras como as de nero incendiário, vinho sobre a flama a imaginar império renovado. Para quem de tudo se viu perdido, que perigo há em deixar a pobre criança jogando com fonemas e léxicos, nessa inebriante descoberta que é, na infância, saber como se alinham as palavras?
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(foto de autor desconhecido)
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