Marta e Maria


Lacre a fechar o subscrito e lá dentro a carta, escrita sobre folha amarela arrancada de um qualquer caderno antigo. Caligrafia miúda, inclinada a promessas, desde que esta terra se fez terra de gente. Um beijo imitado sobre a alvura do papel, artificial timbre dos lábios após gula de amoras. O remetente – Marta – nome martirizando o seu destinatário – Maria – ardido em flor e impaciência, se é arte de santa que o ferve de desejo, e a epístola consagrando-o no mosto nos pés porque foram as vindimas, após frenesi com a parra, imitando ditames bíblicos: “Fecunda em mim o vinho novo”, apenas pedia. Um doce aroma: o das certezas inabaláveis por natura contradição e desdita. «Vês como falece a tarde sem gota de lágrimas? Tem esplendor com a sua queda. Por que não te despes, Maria, e eu também, sem farrapo sobre o corpo, a velar, na sede dos mosquitos, o purpúreo crepúsculo atrás dos montes, quando não há mar para a frescura dos corpos nus, só a areia fina das tempestades?» O vinho já arde nas veias e também há sangue para honrado sacrifício. Tudo soa em poucas horas: no repique dos sinos, na ladainha da apanha, na resposta que tarda. Tudo sem senão: sem antes e nenhum depois. Menos será o que ainda mais arda. Sentido ao sabor do mosto, este trovador não se perderá com a derrota das papoilas no campo.


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foto de Elena Zharkova

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