virgens
Sigo lentamente com o papel virgem sem me levar a parte alguma, apenas desencontros em esquinas incertas. E tu, do outro lado, rejeitando tentativas de aproximação insonsas e medíocres. Ambos sabemos o quanto a virgindade do papel nos seduz: salivamos como cães de pavlov, irrequietos até que a tinta nos seque, esperando apenas o momento certo. Aquele que nos aborda apenas pode sacudir o seu falo profanador, insiste nas nódoas de sémen que precocemente ejacula, exigindo-nos palavras como rabiscos e declarações dengosas em dó menor. Toda a pureza inocente dos papéis quer ele foder. Mas é apenas um velho falo, na decadente e irreversível disfunção eréctil. Diz-nos, salivando, para que ergamos as palavras num grito. Não compreende: o nosso cio permanecerá enquanto soubermos que só os papéis virgens vingarão. E perante isso não podemos urdir qualquer grito, lamentando o quanto a voz se indigna, quando ainda não atinge orgasmo. Somos mendigos e altivos, poetas e ladrões, somos a ocasião para tudo; Cossery o escreveu. Não que isso seja sinal de fraco abandono, de preguiçoso desleixo. Apenas a ambição assombrada pelos fantasmas ignaros do fracasso. Eu e tu sabemos: o grito que reclamam de nós cairá no mundo quando todas as palavras souberem seduzir, em espaço e tempo adequados, todos os corpos virgens que anseiam ser escritos. Até que isso aconteça, são apenas preliminares, ou, em último caso, orgasmos estéreis de masturbações experimentais.
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foto de Margaret Durow
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Alice Macedo Campos, poeta, é autora dos seguintes livros:
- o ciclo menstrual da noite (edium editores, 2008)
- um cão em cada dedo (incomunidade, 2010)
- a mulher sus.pensa (edita-me, 2011)
De uma escrita densa e povoada pelo tema da feminilidade, deixou de escrever ou, pelo menos, de publicar, contrariando o estigma dos prazos e negócios editoriais. Contrariando falos exacerbados.
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