24 de dezembro
Deixaste-me os vasos que pintavas com as tuas mãos, e a pequena oliveira esticando os ramos frágeis sob o orvalho como órfãos de ti. A casa ainda tem o cheiro fresco da madeira nova e, no lugar da parede
(infinitamente branca)
onde pretendias colocar os nossos retratos, ergue-se uma sombra com ares de acolher fantasmas, talvez estes fantasmas que habitam agora comigo desde a tua partida, faz hoje vinte e quatro dias.
Escrevo-te entre os cigarros de que detestavas o aroma, e vejo por entre as frinchas dos estores as luzinhas tremelicando das janelas e varandas dos vizinhos. Este ano não há árvore de natal cá em casa, as tuas mãos voaram para latitudes extremas às minhas. Aqui, um curioso céu estrelado, luzeiros lá longe como os soluços que tremem e deslizam sobre a folha do papel
(infinitamente branca)
receando a velha solidão que avança no seu silêncio de passos largos. Veio instalar-se na tua poltrona preferida, a mesma onde te sentavas a ler magazines ilustrados, folheando com os teus dedos compridos o papel sedoso
(tão bem me sabia ouvir os teus dedos folheando o papel das tuas revistas).
E agora o silêncio definitivo, já com a solidão instalada como que fazendo troça de mim, do meu rosto arqueado, dos meus lábios fundidos na sombra.
A esta hora fumegam as travessas do bacalhau, das batatas e legumes, velinhas acesas, o verde e o vermelho tão solenes sobre a mesa, os serviços de cristal e porcelana, mais o faqueiro de casquinha faiscando brilhos supérfluos, entre o burburinho quente de tantos rostos de tantas famílias, abraçando-se com palavras feitas na boca dos seus rostos. No mínimo, abraçam-se com essas palavras da circunstância festiva…
Disse-te, ainda no verão, que este ano o natal seria na nossa nova casa, mas torceste o nariz porque a família, porque mais outra razão qualquer, pelo que eu, de orgulho feito, há umas semanas decidi
- Este ano, venha quem vier, eu passo o natal na minha casa
estarás lembrada?
E, de facto, concretizou-se a minha profecia: cá estou na casa nova, ignorando os convites calorosos de dó do resto da família, por saberem que passo a noite de natal ausente de todos e de tudo. Ausente da árvore de natal que só tu querias decorar, ausente das tuas mãos confeccionando os doces tradicionais, e dos teus dedos lambia os restos dos cremes e do açúcar. Ausente das tuas cores nos vasos que deixaste, sobrando tão vazios como está agora a casa, como se nada respirasse.
A minha consoada hoje é um bolo-rei oferecido não sei por quem, acompanhado por tragos longos de whisky
(beber faz realmente esquecer alguma coisa?)
entre lágrimas que se perdem de mim. Com o telefone mudo. As paredes frias.
Vou ainda com alguma esperança espreitar nas redes sociais alguém que vista esta mesma amargura, aquecendo o gargalo da garrafa de whisky na minha mão direita. Mas soma-se tudo em vão: não está ninguém, não há ninguém. E então a solidão não é afinal apenas a tua ausência. É também o medo gritando num sufoco sem voz. Que não é ouvido.
Feliz natal.

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