não me iludas


Com o silêncio que se foi impondo muito devagarinho no descer da tarde, na mesma intenção de quem se descalça para não fazer ruído com os sapatos, o meu sonho de ti e contigo acabou por resultar num doloroso despertar para a dura realidade, duas horas depois: entender o quanto me embalou e, ao mesmo tempo, me vem doendo esse silêncio que há por não estares, alastrando-se com o vagar das nuvens fora da depressão tempestiva, para ter adormecido após uma vigília onde engendrei os sonhos, com os quais, como em tantas outras vezes, senti vividamente uma inconcreta realidade, onde não estás presente.

Despertar e perceber a tua ausência, quando ainda o dia não se rendeu definitivamente à penumbra, é doloroso. Estamos em abril, e a primavera tenta impor-se, apesar das investidas de um inverno teimoso. Porém, a primavera não foi feita para isto. Não foi para observar o verdejar e a floração das árvores com a dor do vento fustigando-as com um injusto castigo. Não foi para ver a imensa abóboda azul nublada como se fosse eu quem fizesse as nuvens para as desfazer em lágrimas. Não foi para me espreguiçar com intenso espasmo dos músculos, percorridos por contracturas da ansiedade. Não foi feita a primavera para despertar sem que o inverno não queira definitivamente sair, sacudindo insistentemente o seu capote, a escusar a sua culpa.

E não quero o silêncio de ti. Esse silêncio que magoa, mói de tanto doer, mói e dói, dói e remói. Não quero. Nem quero que a primavera seja só feita para que uma desabrida vespa fera nos coloque o seu ferrão de egoísmo. Desejo apenas que sejamos alados como pequenas borboletas saindo da crisálida. E que tenhamos jardim onde colher o pólen, pousar no estigma de cada flor aberta, e fazermos aquela promessa, de um ao lado do outro para a vida inteira, por mais curta que seja.

Mas tu já desististe desse sonho, outro sono terás, de vigília que te entorpece a memória que de mim tens, e te relembre, confusa, das tuas intenções que viste malogradas. Ou então, talvez padeças de insónia que mais torpe te faz. Nada dizes, nada posso discernir de ti senão imaginar o que estejas a sentir. Como quando partiste (ou eu de ti, não sei, não sei o que foi que nos fizemos), lavrada em lágrimas como as primeiras chuvas desse outono distante, dizendo-me apenas

- Não me iludas

quando, tão só, te quis dizer a verdade. Que as borboletas, ainda que as vejas durante todo o tempo estival, cada uma só vive apenas umas semanas. Que morrem, cada uma por si, e definitivamente todas, quando o calor dá lugar aos ventos mais frios.

Os silêncios, a instabilidade das estações, as vigílias e os sonhos que delas temos também só duram momentos. Dias, semanas, meses. Há quantos meses, diz-me, que os meus dedos não tocam os teus? Não te iludi, cada borboleta bate a suas frágeis asas, todos os dias, enquanto não morre. Mas deixa os ovos que eclodem, a cada primavera, para a lagarta prometida na sua crisálida.

Então, onde ficou a nossa primavera? Que outros bichos (a vigília, os sonhos inconcretos, a dura realidade entre o silêncio ao final das tardes) devoraram os nossos ovos? Ou foi o vento que ainda agora, novamente, levantou e os adiou, sinal de que o inverno anda teima e escarnece?


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foto de Barbara Luisi

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