farfalhada


Estas imensas palavras, acumuladas como multidão de boca escancarada reivindicando a sua existência no mundo, no caminho estreito entre o momento uterino da sua concepção até à luz da realidade que as torna parte dos que as entendem

– A parição das palavras!
– Desculpa…!?
– O acabaste de dizer: é a parição das palavras. Vão glosar-te com essa, meu querido poeta: «a parição das palavras!»
– Mas foste tu que o disseste, não eu. E quem quererá glosar-te, ainda por cima sendo sobre o que agora disse, como um delírio, sem sentido?
– Deves ter lido o que escrevi esta tarde…falo tanto de ti!

Nisto, eu sem espaço, paciência, tempo sequer, para ler e tentar perceber as ninharias que reflectes sobre o que digo ou escrevo. Tudo tão promissor quão são os léxicos que conheces e suas derivações para então os apontares na «exemplar análise de crítica literária» que afirmas fazer.

– Não li, só me interessa o que escrevo, basta-me batalhar contra a minha mediocridade, não preciso de saber da tua.

Com a boca colocada num esgar entre a surpresa e a raiva, e o peito inchado de uma mescla de frustração e orgulho em proporções o quanto baste, vociferas

– A sério?! Como podes ser tão egoísta?!

Ao que eu respondo, entre a indiferença e a constatação do óbvio, de costas voltadas, e com o olhar breve de esguelha sobre o ombro, enquanto perscruto sem interesse alfarrábio a estante sobrelotada de livros da tua rudimentar sala de estar

– Sim? Eu egoísta por não saber o que escreves? Diz então de cor um poema meu.

Impera o silêncio, já acomodado com o rumor vindo da janela, a oito metros do chão e do que acontece na rua movimentada onde moras. Tu ensimesmada, e eu nada curioso.

Condições que passam num repente, porém. Desligo-me do imenso lixo, sem nada de interesse encontrar nos volumes que a tua estante exibe com orgulho, e volto-me para te apreciar com um sorriso sedutor. Tu, dengosa, passas por cima do meu egoísmo e da tua frustração, murmurando, já amorosa, mas ainda de beicinho feito

– Gostas dos meus livros?

sabendo bem que me desiludes, tu e os teus escritos, a tua cultura de trazer ou ficar por casa, e os livros cujos autores e conteúdo eu desprezo.

Então vês-me avançando sobre ti, colocando as minhas mãos sobre os teus ombros e deles a querer saber-te pelas linhas do teu voluptuoso corpo. Além de egoísta sou também mentiroso e insidioso por dizer que tens umas boas prateleiras ou na medida do quanto me basta, em tudo, recebendo a acrobacia dos teus braços e das tuas pernas, tu jurando que apenas o vestido, nada mais interior, a tua carne pronta para me receber e por isso ter sido o quanto foi: muito arfar, suspiros vagos, lábios mordidos, até ao ponto em que, após seminal liquidez, devia resultar num rebuçado de ternura, de trocas íntimas e confissões românticas. Tudo isso o que, passado o clímax, eu descartei, por não me interessar.

Talvez tivesse adormecido? Nem me lembro, sequer, o que foi depois. Agora estou aqui, só, no meu espaço e sobre a minha mesa, com a esferográfica atordoada com esta multidão de palavras insinuando amotinação. Que, por ter estado distraído em ti, me perco entre o que reivindicam, após a madrugada que tivemos de amassos carnais. Enfim, se nunca até agora cresceu de ti a profusão do que sou, e de mim não sentes o ego afagado, por que ainda me procuras, qual a razão dessa insistência, se é desprezo que sinto pelo que és e pensas ser, e tu nem sequer entendes o que digo, sequer o que escrevo?


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foto de Gene Oryx

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