Irene
Na parede nascem os fungos com a súbita progressão da luz abalando a indiferente leveza do cotão varrido no soalho e o farelo da cal que desce do tecto. Veio uma nesga de sol acender o brilho das unhas que repousam na manhã abreviada. Ergues-te num pulo de ave marítima, e tocas-me com o bico da tua boca desfeita na cinza da tua languidez.
Na parede crescem os fungos e já te custa respirar o sal que a brisa pulveriza sobre o corpo encontrado na janela. Uma pequena ave dada à morte, como qualquer folha que perde a seiva e se despede lacónica do ramo onde lhe dava o vento.
Que pena, pensas do ser de penas contadas como rosários sem fim, uma ave branca abalando a tua expectativa de paz interior, porque veio morrer assim este pássaro pequeno quase sobre a palma da tua mão, janela onde te encontras todas as manhãs com o mar e as rugas do céu?
Então olhas-me desesperada pedindo-me calada que te dê as esperadas condolências. Não foste tu que morreste no parapeito, Irene. Não foste tu. Nem ninguém que te mereça comiseração. Apenas um pássaro que não tinha mais onde cair morto. Faz parte do mesmo humor das folhas caídas das árvores, dos insectos esborrachados no pára-brisas de um automóvel.
Vem. Constrói o teu ninho no meu regaço e não te percas a pensar que no teu sangue corre a efemeridade da tua existência. Na parede nascem fungos, e mais estranhas criaturas que não vês passear de madrugada entre as sombras. Vem. Encolhe-te como se fosses menina, inocente e indefesa, e pudesses caber na palma da minha mão, aconchegada dos males do mundo, das doenças, dos hospitais de corredores brancos, infinitos dentro dos pesadelos.
Tens um espelho que tudo te reflecte além do corpo. Não é de vidro nem de folha de estanho esse espelho: são as tuas mãos aparando a convulsão do teu rosto frágil. Sabes que todos acabamos por morrer, Irene? Todos. Todos como pássaros ou folhas tombadas.
Oxalá tombes na tua hora sobre o parapeito da janela de deus, olhando-te comiserativo. Também ele é um ser frágil, que olha todas as manhãs o mar e as rugas do céu, acreditando ingénuo que há esperança. Dizem que vence a morte. Cá tenho as minhas dúvidas: se a vencesse, deus nunca existiria. E seria um consolo tão grande, Irene, não seria?
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foto de Pedro Gomes
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