a curva de Éluard
La courbe de tes yeux fait le tour de mon coeur,
Un rond de danse et de douceur,
Auréole du temps, berceau nocturne et sûr,
Et si je ne sais plus tout ce que j’ai vécu
C’est que tes yeux ne m’ont pas toujours vu.
Paul Éluard
Os olhos sim, o olhar, sempre te disse que o olhar tem tudo o que os gestos não sabem, e que os atraiçoam, embora disfarçam, pelo menos tentam, mas o olhar comanda, e os gestos, sejam insinuados ou não, reflectem o que os olhos, o olhar, exprimem. Devolveste a curva de Éluard para uma distância que não soubemos compreender, e afirmaste que no teu rosto
(também o teu corpo?)
esses olhos curvilíneos
(como o teu corpo)
envelheceram. Encolhi os ombros perante tamanho disparate, da mesma forma como os encolhia após o clímax quando nos amávamos, e te dedicavas a gargalhadas fora de contexto, desmanchando por completo o romance de momentos antes, quando tu debaixo do meu corpo a implorar por mais e como declaravas em gemidos um amor desmesurado.
Sempre foi assim, a gargalhada solta e despropositada após esses momentos sublimes. Agora, dizes que envelheces, e eu cismo sobre a juventude que tinhas, ou a que sempre vi, algo distante da do meu corpo; e se terias de ser assim, gargalhando inusitadamente como se os momentos anteriores tivessem mais humor de riso em vez dos humores da carne e o gutural da tua voz.
Os olhos, os teus olhos, porém, nada enganavam. Sofriam. Imploravam um amor por cima dos nossos encontros carnais, se foram apenas só isso, despojados de amor ardente, ainda que eu o contradissesse, tácito, a acender o cigarro enquanto contorcias a barriga de riso por anedota que só tu compreendias. Estavas só, mais só do que eu podia ser, à procura de amor-próprio.
Eu tentava estender a mão, dizendo sem palavras que entendia esse desespero teu nunca declarado. Mas, assim que estendia a mão, logo a recolhia, perante o teu disfarce de desprendida, o olho dobrado na curva que Éluard descreveu e que eu podia acrescentar mais às palavras que faltavam ao poema, isto é: ao poema depois do poema, observando a nossa circunstância. Palavras que, de resto, faltaram nos nossos encontros, amorosos ou apenas carnais.
Depois, a sombra. Precedendo as condições, as minhas e as tuas, e o quanto o ritual repetido dos nossos encontros se tornavam, embora distantes entre si, numa rotina. Entre circunstâncias anteriores e as de agora, o tempo resolveu-se no teu olhar. Que se passa contigo era uma questão retórica, não precisava de perguntar nem da resposta, apenas esperava que fizesses o teu desabafo, a tua catarse. Que nada do que foi estava sendo. O teu olhar na sombra como nunca vi.
Contudo, a mesma gargalhada. Mesmo nos momentos em que a tal rotina já nos desprendia do fogo original: tentando outras formas de sedução, outras formas de dar, outras formas de como o teu corpo pudesse satisfazer o meu. E vice-versa, embora tu nunca te queixando. Encaravas isso como sendo natural quanto a idade, a tua sempre menor que a minha, falavas de mim, portanto, falavas de eu não conseguir. Há fulgores que se esvaem e não regressam, e tu admitindo aceitar esse facto, não o aceitando eu. O teu olhar já mais distante, porém, como se Éluard se esquecesse do significado das curvas
(as dos olhos; e as do corpo?)
e tudo assim se arrastou. Atravessando o tempo que nos restou.
Até me dizeres que envelhecias. Tu assim, dando aos ombros, imitando os meus, como quem aceita tudo, menos que lhe retirem a paz da velhice. De uma velhice que não me convenceu, porque não a tens. O teu olhar baço, apesar disso, mas a propósito dessa afirmação. Sim, baço, sinal de cansaço e de que basta isto que temos, ou tivemos.
No nosso último encontro
(carnal; amoroso?)
ignorei as tuas magicadas piadas fora de cena; aliás, revoltei-me contra isso, apenas resolvendo as dúvidas ao colocar o meu rosto de lado, encolhido na sombra. Reclamaste:
- Não vejo os teus olhos, o que tens?
e o que tinha, embora não te respondesse, era o declarado não que tu não quiseste admitir; que basta disto, que já não somos os mesmos, um com o outro. Basta, portanto, de disfarçares o teu olhar cansado com as velhas piadas. E eu disse-te
- Os olhos revelam a verdade. Tu é que já não os queres ver
quando eu bem via os teus, refugiados na sombra de quem já não queria mais nada do que tínhamos, do que tivemos. E, portanto, sobraram as razões nos lençóis onde nos deitamos pela última vez; nenhuma rodilha, nenhuma mancha, apenas o despacho de mais uma vez repetida.
Não digas que envelheces. Antes, entende como envelheci, nos meus olhos que nunca quiseram levar-te ao engano. Em tudo, mesmo nas entrelinhas de quem lê o poema de Éluard. As curvas desfazem-se inusitadamente, pensando que corremos num carro desenfreado em estrada serpentina e deserta. Outros podem também seguir assim, em sentido contrário. Desfazer a curva, sem preocupação, pode resultar num embate fatal.
No nosso contexto, um embate entre dois corpos que já não se reconhecem. E por isso a mágoa, a velhice, as piadas sem piada, o hospital e a gravidade de quem quis sobreviver a um amor e não conseguiu. Morrendo disso e para isso com os olhos bem abertos, baços para sempre. Nada que faça rir, senão a curva escarninha que nós, cúmplices de Éluard, esquecemos do seu perigo e que acabou por nos dirimir.
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foto de Susanne Middelberg

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