insónias


Se te perder, perco-me, e perder-te-ás.
Anónimo

Corri pelas insónias como vagabundo de mim arrastando o desgosto de ti. A neblina nocturna adensou-se num nevoeiro cego pela madrugada dentro, varrendo a cidade ardida numa luz baça. Olho a janela velada e escorro pelas memórias. Recordo o dedilhar delicado das tuas rendas. O desfolhar impreciso dos teus livros. Os teus olhos então cinzentos como agora a cidade lá fora e a crepitação das brasas por trás dos teus cabelos. Porque, quando eram os nossos dias assim, pedias-me

- Acende a lareira, amor

com voz enternecida. Eu ateava-te o fogo, que se reflectia na humidade carnuda dos teus lábios. Dois ou três toros de madeira uniam-se na lareira, entre chamas libidinosamente provocadoras, atiçando. E eram então os nossos braços, as nossas pernas, os nossos corpos consumidos pelo impulso, um fogo ateado na inflamação dos lábios que se desejavam até às lágrimas. Corpos fremindo como se o mundo fosse apenas ali, durasse o instante em que perdíamos o equilíbrio de toda a periferia, do alheio, e os sentidos vagueavam entre o sangue e a voz na vez de nós.

Corro agora pelas lágrimas a multiplicar essa saudade com insónias. A neblina deu lugar a uma chuva miudinha e densa sobre a cidade. Como se a tua ausência tivesse nascido do rio e se elevasse, precipitando-se dos céus, a instigar-me novas madrugadas vivas de frio, clamando o ar gelado da solidão.

E ainda olhando pela janela velada, discorro a dor por tudo ser tão diferente de há trinta anos. Porque o eterno se tornou, sem aviso nem precaução, nesta insípida efemeridade. Tão absurdo de tão longe. Trinta anos desde que nos perdemos em parte incerta.


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foto de Eurico Amorim

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