inconstância
Foi na madrugada anterior que te recebi. Soube que vinhas quando senti o teu perfume a dispensar campainhas e batidas na porta. Eram os teus passos na rua depois de estacionares o carro, e já eu abria tudo, principalmente os braços que muito desejavam acolher-te.
Beijaste-me, delicada. Aconchegaste o teu corpo ao meu, no abraço previsto. Chovia, mas ainda assim, brilhavam tanto os teus olhos, tal como sempre quando ora fizesse sol, ora perante o crepúsculo, ora sob a lua cobrindo o rio. Acariciaste o meu rosto de barba mal feita, espetada no meu rosto de menino
(pensamentos teus: bem podias ser o meu imberbe rapaz, como quem diz que a adolescência afinal nunca acabou, que afinal somos apenas um rapaz e uma rapariga que se encontraram, nesta madrugada, para sustentar a infinitude de quem ama).
Não o nego, como nego qualquer negação do não. Não. Não. Não e não, sempre não, o não que sempre quis fazer de nós o contrário do que era suposto.
Por isso te recebi, daquela vez bem diferente, como quem te diz: agora podes, poderás sempre. Beijar-me, e gritar. Tomar este meu corpo que ao teu toma, e gritar. Despertar horas depois, e gritar. Gritar dizendo: és meu, és verdadeiramente meu; sou eu em ti, plena, por me quereres em tudo o que és.
Fiz soar aquela música, acendi a pequena vela rente ao chão, e pedi que te despisses. Ainda que o brilho do teu olhar pudesse ser tudo, estava eu tão insaciado que não bastava esse único brilho, imitando galáxias gêmeas e distantes. Precisava do prado do teu corpo branco, o trigo maduro dos teus cabelos, a alva fonte de carne e água do teu peito.
Precisava dos teus braços nus, das tuas pernas suaves envolvendo as minhas, membros elípticos da via láctea recolhendo-me no justo espanto do pequenino ponto azul onde existe, em anos-luz, o nosso lar, a casa distante onde sempre te esperei, e que da outrora ruína dela pudesses fazer os teus, os nossos jardins.
Tudo assim foi acontecendo como era prometido e desejado: gestos transpirados, desejos líquidos, o assombro de sermos húmus e vertigem etérea. Foi assim, e se fosse cena de cinema, a que outras imagens mais bonitas conseguiria um espectador assistir?
Porém
(porque há sempre o porém entre nós, não é?),
foi a meio da madrugada anterior que despertei com o copo do uísque tombado, o líquido amarelo aquecido pela luz da vela, rente ao chão, e o meu corpo à beira da ebulição. Depois, mais desperto e ao conferir que nunca a porta fora aberta para ti enquanto caia a chuva, o meu corpo entrou em exaustão, tremendo de frio e ressaca.
Fazes-me falta, com o sol que fez desde manhã. Vem agora o crepúsculo. Eu não sei por que falta continuo cometendo a minha culpa. Não sei o que falta para nos realizarmos. Aqui, arrumando o que não estava desarrumado, compreendo apenas que, qualquer que seja a falta, farta estás tu já, que tanto te canso há imenso tempo. As mesmas promessas, de que um dia talvez eu deixe definitivamente de ser uma inconstância em ti.
Podia dizer melhor, podia referir que é agora, que já há espaço e tempo para sermos tudo. Podia, sei que podia. No pretérito imperfeito indicativo do verbo poder, qualquer um sabe fazer sedutora oratória. Mas eu abusei, corrompi a oratória, corrompi a sedução. Ao ponto de não acreditares, ou não saberes acreditar. Ao ponto de, pedindo que viesses
(será que pedi mesmo? ou já estaria sonhando?),
tu tinhas há muito decidido que não. Não, não e não: não o teu perfume em vez da campainha ou batidas na porta, não o teu carro estacionado e tu dele saindo, com o brilho dos teus olhos, com os braços preparados para receber os meus. Porque, mais uma vez, tu não vieste. Ou que vieste, repetida, por ilusão minha.
E tive ainda eu o desencanto, quando despertei a babar-me do uísque da véspera, de me dizeres que nunca mais será como foi… Com a agravante de, na tarde que se põe agora, voltar a partir, sem equacionar hipótese de a ti regressar. Nem que seja para o mesmo de sempre, para a mesma inconstância. E isso, acredites ou não, só me destrói. Ou seja: és tu, ou eu contigo
(e tu comigo; o que somos nós)
pedras que vão desmoronando, entre outras, erodidas por o que queria ser e não sou.
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foto de Mikhail Reshetnikov (editada)

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