os gatos quando têm fome


para a Anabela Fernandes

Não acredites tanto nessa coisa que ele diz. Que escrever é uma labuta despropositada. Não interessa onde publicas, que livrinho carregas estudado. Ou, se simplesmente, dando aos ombros, libertas as folhas de papel pelo ar. Escorraçando a penúria das palavras lá dentro, teu corpo grafado. As folhas vão caindo num vagar de lente. Tu toda jazz da cintura para cima, meneando a cabeça, o torso numa moleza de morsa, e as pernas mortas. É como no inverno, as noites longas e achadas perdidas. E todos esses papeis, enquanto não totalmente caídos, vão como que bailando sem gravidade. Levam o rascunho da tua letra cuidada, e por isso mesquinha, por tão pequena que pensas que és. Pensas: sou uma idiota. Sim, és uma idiota, convencida foste por ele. Com a particularidade de conseguires ler um piano, apenas três chaves de algibeira, a cigarreira ainda completa, um isqueiro queimado, a lona por sombra em dias de praia. Uma idiota que promete tudo com o que não tem, uma idiota que pede o que outros, como ele, ignora. Beberricas, em gestos obtusos, o paciente brandy. As folhas sossegam no chão, o livro que escreveste nas montras, e há quem decide por ti, a apontar a capa, procurando na grossura da brochura se tiveste muito ou pouco que dizer. Decide por ti: tu dizes pianinho, o trompete surge preguiçoso – mas, no concreto, sentes que estás escandalosamente drunfada, sem consumir qualquer estupefaciente. Tu dizes parágrafo, pela acidez no estômago, tu dizes qualquer coisa sobre a escuridão no quarto – mas, é ele quem decide, se assim é, ou apenas mais uma das tuas patetices. Está lá para decidir contradizendo-te. Ele lê, e diz que lê melhor, porque pensa ouvir melhor. Ouve o mesmo piano, mas com estrondo – diz que é uma sanfona que incomoda. Ainda bebe do teu xerez, fazendo cara feia de quem nunca beberia tal poção. Ele ouve e diz e faz por ti, dás-te conta? Ele lê cada parágrafo teu, sem ouvir as tuas ondas lá longe, empurradas por ventanias. Patético ele como tu és uma idiota. Tu dizes fim. Ele ouve qualquer coisa sem acreditar no fim. E quando tudo se sente, aquele ar que não engana, o bafiento que se repete, o insustentável que ouves há décadas, uma etiqueta promocional de verão que surpreende ambos. Não há labuta, só existe o preço a pagar, e nunca é o que tu pagas. É o que ele paga. Vem soprando um saxofone, instrumento que nem muito aprecias. Mas, de suspiro, ele sabe ler, ele sabe ouvir. Portanto, ele decide pela cor da capa, pela grossura do caderno. Ele e ninguém quer saber do teu suor matutino. Quando comes, quando te vestes, quando articulas a chave com a ignição, e que coisa vais queimar. Ouves o queixume longo, grave e gutural, do gado que enfrenta a guilhotina em cadeia? É igual o teu grito, quando e se ainda acreditas nessa coisa que ele te diz. Qualquer pessoa se sente capaz de despir a camisa para cobrir quem sobe uma escarpa fria. Quantas pessoas, de tanta gente, ouves tu dizer que despe o último trapo de uma cueca para cobrir a vergonha alheia? Senta-te, já está o trompete estridindo. É tempo de voltares a escrever. Escrever, em acasos, contra ele. Para que definhes, claro. Como convém te convenceres disso, por desejo dele. Quer ele lá saber dessa coisa do engenho ao despertar... Aguenta-te. Esvazia a cigarreira, dorme torpe e quase, muito quase, ou quase nada, sob o volume do copo. Perdes a conta ao poupar, do que é de poupar, do que há para poupar. Vais perceber o que é poupar quanto estiveres ciente de que quem manda, que quem decide não é ele. A vasculhar na montra como quem vai denso no lixo. És como os gatos quando têm fome. Tu terás as garras de fora para o contradizer, tu bufarás zangada à sua presença. Isso será o fim dele: cachorro que só late, histérico de medo quando uma gata lhe dá resistência. Gata que lambendo as patas por desinteresse, sabe que venceu o seu arqui-inimigo.


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foto de Nantu Das

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