inchaço
Deixaste-me sem chão e em chão nos quiseste dormir, junto às poeiras rasteiras. Insuflava algum vento nas cortinas com a corrente de ar entre as janelas semi-abertas. Os galos, negras plumas sacudindo e berrando as horas quando nem o sono dos relógios podiam render-se perante a ainda ausente luz de leste. Quem adivinharia que o novo dia seria parido pela minha insone madrugada?
Ambos entre lençóis puídos - percevejo nenhum na enxerga por colchão improvisado. Para além dos mosquitos no tecto alto zumbindo – zombando – percebi centopeias nas frinchas escuras, mais sapateiros bichos, e ainda outra humidade entre bolores e teias puídas, tudo nunca limpo. Os teus dedos e língua foram, horas antes, como as aranhas ali recolhidas. Tu e os teus insectos solfejavam
ih eh
patas peludas como microscópicas tenazes
yh vh
olhos multíplices como fotos sobrepostas
iah weh
a aranha circundava o meu baixo-ventre numa caminhada rápida em oito pedaladas
jave
e deixou o seu ferrão entre os meus enrolados pêlos
jeová
ao princípio, só senti comichão.
Tu dormias como se nada fosse. Que há nesse respirar de fadiga o nome do deus que te condiciona e me deixou sem chão num chão que me atacou?
– Viste como inchou aqui?
Nascido o dia, a tua mezinha: unguento de uma qualquer lama cuspida, resmungando de indiferença
– Isso passa.
E foste, transpirando, a procurar o quipá antes sequer da cueca que te cobrisse o monco que, naquelas horas antes, me fez ofegar
ah uh eh oh
uma ofensa por contrariar o solfejo do teu deus. Esse deus rastejante no tapete onde quiseste que dormisse. Não me admira que veja como nas fotografias sobrepostas, olhos e mais olhos, dedos e mais dedos em microscópicas patas peludas. Depois, a ferrar onde e porque o ofendeste.
A mim já me ardia tanto aquele ferrão! Queria alívio, entre a primeira urina da manhã. Mas, na enxerga, só te ouvia murmurar
– Sou grato a ti, rei vivo e eterno…
enquanto eu inchava e inchava, inchava tanto como se aquelas horas tivessem perdurado mais do que seria concebível.
O que me valeu, com a vergonha disfarçada pela minha insistência em manter os olhos fechados e um exagerado esgar de dor no rosto, foi a proximidade de um hospital. O Hospital da Santíssima Trindade. E tu, ridículo com o quipá negro sobre o coruto, lamentando pelos bancos do hospital como se fossem o muro das lamentações.
_
foto de Patrik Valasek
Comentários
Enviar um comentário