a fotografia

Fazias sombra com a tua mão sobre os olhos, e os teus cabelos como risos soltos pelo vento, câmara lenta de cinema em dias festivos, o sol enviesando o teu olhar. A mesa exposta de fartura, o vinho supondo tardes esquecidas para o sono. A sombra fazia-te rir e brincavas com o sol papagueando a tua voz. Olhavas os convivas e propunhas cenas de uma qualquer película, fazendo gestos lânguidos para que te entendessem. Os cabelos arrumados sem fadiga, a alegria. Depois, a fugir da festa, o sol sem palas que queimava sem piedade, a barcaça para ir à outra margem, os mirones contentes pelo entusiasmo das minhas mãos que faziam brotar, sob a tua blusa florida, os botões dos teus seios, a ansiedade húmida quando me guiavas a mão por entre as tuas coxas.
É tranquilo rever algum passado, como quem passa os dedos nas lombadas dos livros e apontar: este li, aquele não, já essoutro nunca me saiu da memória. Assim como nas fotografias. A jeito, um pequeno conjunto de cassetes de fita magnética onde grafávamos fonemas concretos com as nossas vozes jovens. Foi um momento solene, a nossa primeira vez: ouvias-me a arfar, como cavalo de longa jornada, à espera de água e do feno. Sabias (ainda saberás?) como saciar aquela minha fome, mas a sede ficava daninha como as ervas que sob o mesmo sol medravam. Lá longe, os ainda tímidos prédios de cinco andares permaneceram até hoje com os estores fechados e sem nada nem ninguém que nos suscitasse inibição. A minha erecção, na vez da mão, foi adentrando em ti, e tu a dares-te por perdida no espaço onde nos deitámos.
Que coisa tão fora de horas para recordar, dirás, mas acontece que eu fui animal ferido, e nunca foste capaz de me trazer a água necessária, era apenas o feno. Havia a procissão de fé entoando pelas ruas até à igreja quando o teu convite era tão só para visitar a floresta. Eu sei, só saberá mais quem ainda o pode recordar. Como saíste da minha vida. Por isso, fico por aqui. Não tenho vontade de trazer qualquer outra lembrança. Apenas a graça do teu rosto gravíssimo, sob o sol, e a tua mão fazendo de pala para que pudesses ver mais longe – esse momento da fotografia que sempre me fez sorrir a cada revisitação. Também sei que, desde aí, percebias o que o futuro havia de te fazer se sem mim fosses. O que resta agora, quando dissolvo no papel a tinta em modos de artesão, são os fragmentos de uma qualquer película que o tempo cuidou de endurecer. E que é impossível ler com tamanha rigidez.
_
foto de Sergey Shishlov
Comentários
Enviar um comentário