dispersão


Ficam-te dispersas as palavras quando o teu rosto é transparente, mas nunca transparência por pureza, por honesta verdade, não. Transpareces por invisibilidade, um rumor quase inaudível que, porém, se ouve e importuna, como o zumbido de um mosquito. Por isso és nada ao olhar dos outros, incomodados até ao ódio. Deixas por testamento as mãos, seguras sempre do que escrevem. Pensas numa viagem, deixar o que está e o que não foi feito. Alimentado pela comoção consideras o abismo como aquele cliché de reclamar a atenção, e depois ser salvo, porque apenas um salto e perderias a vida. Sabes que não hesitarão os que te apontem a loucura sem nunca – sabemos que nunca – um esforço para entender a solidão. Apanhas um papel, branco, uma esferográfica cuja tinta ainda viva, e rascunhas palavrões, riscas, fazes alegoria, desenhas a azul-caneta uma forca, cloacas forçando poias e mijo, e quaisquer outras coisas mais assemelhadas a monstros e lágrimas. No final do dia, apenas o apontamento:

A esfera da esferográfica é um automóvel solitário em voltas e mais voltas pelas ruas de uma cidade real e de todo impossível, vazia mas sempre sobre-habitada.


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foto de Nikolai Solomin

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