prognóstico parcialmente nublado

    

Não foram as infladas cortinas correndo entre janelas, nem sequer os salpicos de água na terra arenosa. Varejando o ar, as moscas pintadas de verde têm inveja aos mortos, enquanto não são a merda que elas desejam perceber. A merda na qual as varejeiras vão aliviar-se poisando a sua prole. Por isso é que a merda é a inveja, e verde é a inveja sofrendo por merda. Sofre-se com esperança de dias melhores. De olhos postos sobre mortos intestinos e moscas, mal percebendo das maleitas do inteiro corpo, deitando as tardes a dormir.

Hoje não vi, não quis, não fui cheirar a manhã. A tarde ubíqua nem sequer se rendeu ao gelo do copo. Vejo as portas entreabertas mexerem com as mesmas correntes de ar que fazem com que janelas soprem as velas de naus desnutridas. Entretanto, nenhuma cor se defere à hora, nenhuma noite vem para a redenção. Sou só eu, parcialmente nublado.

Caiu a incerteza sobre o cigarro acabado de acender: a cinza foi à boleia do ar sempre correndo. Não é meu intento sentir a vibração das cordas tangendo – que força espero dos meus dedos? Nenhum leito, o gelo permanente, o frio que sinto: a alma arde em febre, percebendo a hora do retorno. Fechai as portas! sonhei eu, Vide os pomos da terra, a colher com a sede do verde branco, já sacudidos pela traça!, insisti. Enquanto isso, moscas.

Traçam o nada esquecido. Queres ver como é morrer? Espera até que o teu calor finde. O sol ainda arde sobre a tua pele posta à beira-mar. Raro será se sentires o calor esmorecendo. Só acaba a tarde quando se morre. Tu ainda ficas. Estendida a escutar a areia rebelde sobre o perímetro do teu corpo, as tuas costas, os teus ombros, debaixo do vento que te engana acerca do caracol que lambe de secura a tua pele, nada de caranguejos a ferir sinais de nascença com golpes de tenazes, ou cismadas metástases. Há ainda a areia que te socorre, várias janelas abertas, portas entreabertas. As que rangem, como rangem os teus dentes sobre a carnificina do meu corpo em exéquias.

Não imagines a manhã. Esquece qualquer evening post lido em cadeirinhas ridículas que se enterram como ventres dilatados. Queres ver como é morrer? Fulmina o ardor da tua vulva, que vai mirrando tal qual o esquecido bivalve sobre a areia quente, encolhido na sua concha. O mar ruge enquanto transpiras, e o leste fustigado pelo vento que não deixa de correr entre as portas – as que fechaste, e entre as janelas – as que me coube de abrir. Num vaso, progride a raiz dos temperos. Nas vinhas, o fruto a uns meses fermentará, e todo o álcool destilará nas nuvens.

Repara como se morre: entre os dentes pedalam pedaços de gelo. O rio que obrigou a montanha a parir um vale, no oriente, para se esvair a oeste. O teu corpo que vai escaldando, na mesma hora em que o meu pede velamento. Abutres são gaivotas estridindo, embora sem faro para corpos que entram em composição da descompostura, lentes para perceber que carne entre as lixeiras. As moscas verdes, cada uma vestindo o fato solene de cicerones alegres.

Não foram as janelas inflando as cortinas cortadas pelos salpicos de areia sobre as águas embrulhadas de lantejoulas e espuma, bebidas brancas toda a noite: pagam eles uma vez e para elas qualquer bebida é gratuita desde que deixem os mamilos varejando o ar. Há nódoas verdes que inundam as retretes, a suposta prole depositada em merda. Há ainda os olhos assim, sempre parcialmente nublados. Tudo se configura para que os dias não substituam as noites onde são fartos os preservativos estrugidos pela sombra de ameaça de nova vida.

Ainda queres ver como se morre? Levanta-te, sacode a tolha do teu corpo a imaginar um sacrílego sudário; calça as tuas sandálias, que a areia ferve; encolhe-te na viagem para oriente. Perceberás que o mar te enganou: afinal, nenhuma porta entreaberta, muito menos janelas arejadas. Sacode da vista as moscas que, enganadas, entraram contigo nesse retorno. Quando sentires como ruge o sul, lembrando o teu mar em ventania, poderás sentir. Sentir que o corpo que eu fui é apenas um anúncio garrafal, luzindo em néon através da noite que adivinhará o teu próximo despertar. Exéquias feitas sobre o que fui, terás de te precaver com os próximos dias: os teus, mais nublados, sem areia ou sol para te sentires quente, nem mar onde te possas refrescar.


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foto de Aleksandr Yurin

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