partilha


Tantos momentos que partilhámos. De termos e sermos uma casa, de amplas janelas. O aparador da cozinha a suster a jarra com tantas flores, como querias. Afirmavas, galhofando, que a jarra florida era a representação da nossa cama. Esta cama onde ainda agora sinto o teu odor de macho carente, o teu odor de menino ferido, o teu odor de quando me protegias dos sinais que pudessem manchar o meu humor.

Naqueles momentos ainda. Eu costurando tecidos velhos para novas utilidades, tu na volta da horticultura do fundo do quintal onde sempre sorrias e movias os lábios, a dizer qualquer piada ou poema. Sozinho, com os teus botões de rosa; o roseiral era o brasão do nosso lar – tantas vezes o dizias, já sem galhofar. E trazias, no final de cada manhã, o fruto e o verde da nossa salada-almoço aos sábados, com peixe grelhado e o melhor dos vinhos que tão bem sabias escolher para mim.

Vinha depois a tarde e os nossos dois gatos em longa modorra. No ar o aroma da giesta florida por ser Maio. E quando era Maio era o teu mês. Também o meu, por ser mês do meu aniversário, ao dia dezasseis. Mas era tudo para ti, meu amor, que dizias que eu, só eu, pude ser a flor de um Maio que tanto ansiavas no teu passado. E dizias, por isso, que eu fui tudo. O teu presente de tudo.

Hoje… o tudo de então era muito mais puro do que o meio-termo de agora. Desceste à cova, faz dezasseis dias. Deixaste Abril acomodado na memória sem a esperança de júbilo. E ficaste, ficamos, sem nada. Desceste a essa cova funda, faz vinte e um dias, e parece

parece-me

que, na idiotice dessa doença que te encovou, obrigando o teu espírito a partir para local incerto

(só certeza na memória e no coração),

que o ar hoje é só de poluir. Como o resto do mundo fora do nosso espaço. Esse mundo que te incomodava, o mundo que querias tanto que mudasse, mas sempre insistiu na sujidade, na imundície pior que o humano pode gerar. E um mundo assim, imenso e cheio de gente que só queria ver-te transido, de nariz apontado para cima, olhos inequivocamente cerrados, a contar as teias de aranha do tecto.

Essa gente viu, enfim, a sua oportunidade chegada. Porém, eu não deixei que tirassem disso quaisquer laivos de infame victória. Selei o teu caixão. Não precisei de ver o que lá ia dentro. E se eu não precisei, os outros também não podiam sequer ousar ter essa necessidade. E passaram vinte e um dias. E eu estou aqui, agora.

Agora, quando tudo isso já foi. Finalmente esquecida das outras pessoas, posso, em descanso, me desnudar. Para voltar a sentir-te. Porque já é Maio outra vez e quero receber-te na hora prometida da aurora quando se estima um dia feliz e estival.

Os momentos que vivo hoje sem ti todos hei-de sempre querer partilhar contigo, entre a flor e o azul, o plasma de onde acredito que me observas. Os outros já te esqueceram

(o mundo)

mas eu não. Eu não saí daqui, não sairei. E acabarei por ser a hera que cercará o espaço onde fomos ambos, a preservar de verde as ruínas e as cinzas do roseiral, depois de eu também descer, para junto de ti, à cova funda.


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foto de Zachar

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