falsa catarse


Quem me procura agora neste jazer? A chuva, ainda que breve mas forte pelo início da manhã, ditou ao meu corpo que fizesse descanso. Bátegas insuficientes, no entanto, para deitar as tardes a dormir. Seria mau acordar, já depois do crepúsculo desfeito em sombra, para constatar que o sono fora de horas é um desperdício, irrecuperável, para o que ainda as tardes de maio tanto prometem.

E procuram-me, em modos quase subversivos, enquanto eu tão disléxico a imaginar os poemas que podia escrever e me tenho recusado a fazê-lo. Procuram atormentar-me

(o telemóvel parece um corcel de feira)

com essas teorias difusas e tão complicadas sobre a política, a arte, a literatura, o amor e a amizade, homens, mulheres, o mundo, a guerra. Procuram-me em esquinas de sombra que meus olhos não reparam, barbando as suas intenções para se cravarem

(raízes daninhas)

no impasse entre o sono e a impaciência. Dizem

- Vem, camarada

mas dizem também

- Deixa-me em paz, não estou para aturar-te

e tudo se acumula, por essa radícula imposição dos pesadelos nesta maré inconstante da vigília em que navego.

Nunca tive queda para navegador, e confunde-me o espaço quando as naus vão em modo desequilibrado sobre as vagas. E, entre essas vagas

(ora gigantes ondas, ora o burburinho do mar em forma de rolos de água)

lá surgem as sereias de sempre, acenando:

- Vem!

num encantamento temeroso.

A cidade transforma-se. E digo

- Ela está aqui

a saber perfeitamente que desliguei da realidade e só estou a consumir, na transpiração sobre os lençóis lavados, a catarse que deixei de fazer na verborreia escrita. Murmuro

- Ela veio

e vejo aqueles lábios carnudos, a franja do cabelo sobre a testa, o olhar implorando como se centenas de fonemas e milhares de gemidos. Rebatido o banco, a mercê do corpo crispado, enquanto eu resistindo, vendo como padeço ao sol incindindo ainda sobre o rio.

Quem me procura, se jazido me trago? Em que comboio vais viajar da próxima vez?

(o telemóvel parece um corcel, já disse, e que vantagem há num telemóvel que faz som de fogo de artifício se nada dele, quando eu desperto, me responda por onde vão as insónias?)

Alguém me procura. Alguém que me oblitera. Espero que seja alguém que consiga…

… não. Antes:

que seja alguém que saiba. Alguém que saiba, mesmo por mágica ciência, instruir-me a esquecer o que nunca foi suposto suceder: há alguém? Ofereço um copo de frutos vermelhos, quando a noite consentir a oferenda do meu pénis erecto. A mercê que não foi conjugada.

Amanhã: como poderei concretizar a catarse e livrar-me deste pesadelo, se os primeiros olhos que procuro são os da sereia sonhada? A cidade ofega, e há diversão dos estudantes. Hoje não terei a noite, como não tive as outras. Há muito tempo que me separei da noite. Nas horas menos próprias para começar a pensar e divagar muito. Pudesse, nessa ocasião, o telemóvel entusiasmar-se como corcel de feira que tanto aparenta. Mas não. Resolve calar-se.

Quem me procura, então? Um duche de água fria pode libertar-me desta falsa catarse?


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foto de Luka Trajkovic

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