campeão


Havia um televisor a dar conta da expectativa dos adeptos de futebol. Numa esplanada na baixa, junto ao rio. O sol, na atitude de quem vai deitar a noite a dormir, incidia sobre o aparelho, e nada se via.

E eu a pensar numa maneira de, findo o crepúsculo, conseguir levar-te comigo. O rio tinha aquela ondulação amena por causa do vento. Levava cada azeitona à boca para sustentar o prolongamento de mais uma cerveja.

O vento, nada desagradável naquela esplanada a acumular o sol desde o início da tarde, também fazia ondular os teus cabelos negros, brilhantes. No rio, por vezes repetidas, passavam barcos de passeio turístico a sulcar as águas, ondulando-as para a margem. Percebia no teu olhar como apreciavas o fenómeno, pois ondulavam os teus olhos quase de igual forma.

Os meus olhos concentravam-se, depois, na tua mão, com a grave tentação que tinha em tocar-lhe, tocar-te. Nesse momento, um bando de gaivotas pairou perto em voos circulares, com a sua particular estridência. O televisor continuava encandeado, mas ouvia-se bem o apaixonado relato do jornalista.

Nisto, houve um troar nas mesas vizinhas, vozes num uníssimo clamor. Entendia-se que uma das equipas pontuara. Tu bebericavas pelo teu copo multicolor. Uma das gaivotas baixou o voo e foi aterrar a menos de um metro da nossa mesa. Sorriste, primeiro, depois volveste o olhar para mim

(eu a beber a quinta… a sexta?... cerveja muito fresca)

e disseste, como que distraída nos teus pensamentos

- Tão gira, não é?

e eu tão cheio de confirmações para essa questão. Não pela gaivota, mas por ti. Confirmações que eram, naquela hora, confissões.

Outro clamor nas mesas pelo anúncio do final do jogo. Seguiu o televisor para anúncios comerciais a propósito. Sorri para ti a concordar com o à-vontade da ave que veio debicar migalhas de pão e cascas de tremoços, tão próxima da nossa mesa. Porém, com uma quase indecorosa fixação na tua mão esquerda pousada sobre a mesa

(onde estava a tua mão direita, que fazias com ela?).

Poucos minutos depois, já se ouviam as buzinas dos automóveis festejando o vencedor do jogo. Nas mesas vizinhas, pedia-se outra rodada. E o meu copo, outra vez, vazio. O teu também, ou quase, já o raminho de hortelã desmaiado. Perguntei

- Mais um?

erguendo o meu copo vazio. Foi então que a tua mão direita se exibiu, em par com a esquerda. Olhaste-me com um sorriso que combinava lábios e olhos, enquanto nas mesas vizinhas começava um hino a capella de campeões. Disseste

- Acho que é hora de sair daqui

e o meu queixo concordou. Não disse uma palavra.

Paga a despesa, saímos da esplanada. A tua mão esquerda ocupou-se a procurar a minha direita concedendo então que o meu desejo fosse concretizado. Tínhamos as mãos dadas, e abandonamos o recinto das bocas escancaradas de vitória, somos campeões, de olhar vítreo por tantas rodadas de cerveja e vinhos, preparadas para muitas mais que se seguiriam até ao findar da noite.

- Chegada a hora de ires para casa, não é?

perguntei, mais para fazer conversa de circunstância, sem acreditar que a resposta fosse positiva. De facto, não foi. Respondeste:

- Sim. Mas não para a minha casa. Quero conhecer a tua. Também queres?

Eu não tinha percebido muito bem, mas, às tantas da madrugada, enquanto na janela a fumar um cigarro e a apreciar o teu sono na minha cama, entendi finalmente que a tal equipa de futebol que apregoavam se sagrara campeã. Tantas eram as buzinas àquela hora, e muitas

muitas mesmo

bandeiras a circular, com os automóveis, na avenida. E eu só olhos para ti, delicada no teu sono de sábado à noite depois de dizeres que eu sou o teu campeão, que tudo o que tivemos foi o quanto esperavas há muito.

Olhei para as minhas mãos. Acabei o cigarro. Deitei-me ao teu lado. Quando comecei a adormecer, tive o sonho terrível de tudo isto ter sido um outro sonho, inócuo. Mas não: o despertar foi a inaugural alvorada dos nossos dias futuros. Afinal, fui eu também um campeão, após tantos meses de treino frente ao espelho, a enfadar-me da idade que já tenho, tão longe da tua.

Foi o teu despertar

(tão pueril como ternurento)

que me dispôs a perceber que idade nenhuma cabe no nosso caso:

- Olá, meu amor…Bom dia!


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foto de Angela Berlinde

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