o evangelho segundo este poema
ou segundo A Última Tentação de Cristo
livro de Nikos Kazantzakis
filme de Martin Scorcese
filme de Martin Scorcese
Nascemos.
Jamais seremos indiferença.
Ergue-se um mundo do mundo já erguido
nele as glórias, as vãs glórias
neles as alegrias, as solenes alegrias
neles os amores, emancipados amores
nele o nosso gemido
nele todas as histórias
todas as histerias
todas as dores.
E de um mundo então erguido,
morremos.
As minhas sandálias tentam seguir as areias que desfazem os teus passos. Ó sombra que me persegues. Porquê esta angústia, esta piedade que me lacrimeja os olhos - quando estou entre a multidão. E por que desespero? Por que me dói onde não tenho qualquer ferida? No talhar do machado sobre a madeira ainda jovem, cada prego nas entranhas desta carne por saciar, broto uma lágrima que cai lenta e apaixonada no pó que se levanta e rende, húmido e salgado ao medo de ser quem sou, à angústia que me assalta pela noite. De onde vens, por que me persegues se te não vejo? As madrugadas, estendido na minha enxerga, são martírios por te querer em cada veia minha, e não te conhecer.
As gentes bebem e comem, gemendo sorrisos no prazer da gula que lhes sucede à fome miserável da alma. Vêm até mim e eu lhes digo que a minha fome e a minha sede não se sacia, nem os meus lábios sabem rasgar o mesmo sorriso. Levam-me a casa de uma mulher e dão-me haxixe, dão-me vinho para que beba do espírito e o espírito queima por dentro todas as fomes do homem que sou. As gentes bebem e largam risos perante meu olhar petrificado: ali, no ventre daquela mulher, nascem víboras que clamam o meu nome.
Nascemos: jamais seremos indiferença. Eis onde vive o mistério de todas as dores, de todas as crenças: o nascer para a vida, erguendo-se um mundo do mundo já erguido. A palavra que renasce em cada um dos homens e mulheres que habitam o mundo para quem o amor e o apego à vida é o caminho de que se desviam. É mais fácil, dizem, qual camelo rendido à estreiteza da agulha. E, apesar disso, lêem os profetas: Todas as glórias de todas as conquistas, todas as lágrimas de todas as derrotas, todo o amor, amor maior com que me revisitam, toda a dor, dor que me alimenta, e dor de que te sacias: eu sou o filho do homem, duas vezes carne do mundo. Cumpra-se a palavra para que o tomemos reerguido.
Jejuo do que é particularmente terreno. Saio pela noite fria, envolto em meu manto e não carrego a enxerga - esta noite não é para dormir. Encontro na raiz das minhas veias o segredo das insónias quando o tormento exasperado sai de mim como a carga que cai do dorso carregado do camelo. Esvai-se tudo de mim como se o sol repousasse todas as horas por trás das crinas das dunas e sou livre e imenso no ventre de tudo de que se faz o vento.
Vinde até mim, almas perdidas e fustigadas pelo gume da indiferença, vinde ao calor do filho do homem, aquele que jejuou dos prazeres terrenos para encontrar a palavra redentora que vos vem salvar. Vinde até mim, órfãos da riqueza, espoliados da soberba, arrependei-vos da vossa nefasta solidão. Vinde, vós que bebeis perenes das fontes do prazer e não sabeis explicar o azedume das vossas lágrimas; chegai aqui, indomáveis, rebeldes, delfins, insaciados, proscritos, abram as mãos para receber da palavra e dela comer. Vinde até meus braços, vós que sofreis de dores e tormentos, feridos e esfomeados de toda a natureza, esquecidos e maltratados. Vinde, e recebei a redenção. Em verdade, de todas a verdades vos digo que estas palavras que vos canto são os versos com que o pai pediu para exultar o mundo.
Venho em paz como estou na brisa que suaviza o rosto do campino ceifando a sua seara. Estou também no trigo de todas as fomes, na carne e no sangue, no dilúvio e na tempestade, e estou também na água de todas as sedes, na aurora e na bonança. Estou na lágrima que rola do espinho cravado na alma do mundo, estou no meu pai que te perfilha, na minha mãe que te acarinha. Estou no mundo erguido pelas minhas mãos.
Que desça sobre a terra toda a incúria salgada da vossa fraqueza e se derrame do meu sangue como um cordeiro que morto foi para saciar a fome aflita. Que se abram os céus após o vão dilúvio, que se encha a colina de sol e de brilho os mares. Sou aquele que ama e se entrega, pois erguido foi este mundo.
Escrita na história e nos passos por sobre a areia que palmilhei está a cumprir-se a profecia:
e de um mundo então erguido, morremos.
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fotograma do filme The Last Temptation of Christ, de Martin Scorcese
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