já não estou
Esquece os meus caminhos contigo. Foram sempre encruzilhadas, ou perigosas águas de dois rios que se contrariam, na pedrosa foz perante a suspeita calma dos salgueiros das margens. Não volvas, nem sequer olhes para trás. Os teus passos fizeram poluição sobre os meus caminhos: foram lama produzida pelas piores monções; foram semente de altas e agressivas ervas daninhas; foram detritos mal-cheirosos que nem as gaivotas visitariam; e foram ainda a terra seca e batida, mas tragada pelo arame farpado e pela brita que me feriam os pés sem que eu, mesmo dolorosa, desse conta.
Esquece-me, pois só nas tuas noites solitárias te lembravas da minúscula eu no teu mundo, quando de um dos teus vagares de sombra, a murmurar
- Ela…
sem nunca conseguires definir-me pelo nome. Porque nunca, nunca soubeste chamar-me. Insinuavas, apenas. Eu era ela, aquela, a que qualquer coisa. O teu último refúgio, quando já severamente esgotadas todas as tuas possibilidades. Quando tu em desespero. Acredito que só numa angústia
(tantas que dizias ter, se te conseguia derretido em confissão)
muito à beira do suicídio. Porquê? Por que querias morrer? Nunca soube. Soubesse, talvez tivesse compreendido e ter-te dado um empurrão em vez da mão a que não quiseste, jamais, dar valor.
E, mesmo assim, desesperado e a precisar da tua última boia de salvação, ainda inventavas um jogo. Ou uma teia. Uma qualquer distração de aranha maliciosa. Eu caía, eu era a mosca, rendida à tua vontade de me devorar. Porém, foste sempre uma aranha muito preguiçosa, perversa, ficando só a ver. A assistir à minha aflição. Se eu era capaz de me soltar os nós do teu abismo para o qual sempre me arrastaste.
Já não estou. De mosca passei a falcão, capaz de entender as armadilhas em alto voo. Entendes isto? De eu já não estar em qualquer parte onde tu possas estar? Não quero mais.
É que prefiro espetar os dedos, os braços, as pernas, as rubras faces da minha vergonha, todo o meu corpo, enfim, no mar de espinhos de um jardim de cactos que apenas me enganam porque sabem florir, e só por isso posso deixar-me seduzir. Contigo não era assim, em nenhuma flor aparecias, ainda que o intuito fosse só ferir, envenenar pelo olfacto ou pelo toque. A parca sedução logo se transformava numa aflição e eram só sombras, declives, precipícios, poços fundos. Hoje, prefiro todos os espinhos, todo o pólen que me faça espirrar, todo o feno que me faça delirar em febres primaveris, do que voltar a sentir a mordida quase fatal dos teus beijos.
Não acenes: ela já não está.
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foto de Brooke Shaden
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