negócios estrangeiros
Ignoras-me agora para te dedicares aos negócios estrangeiros, atento ao que dizem esses comentadores na tv sobre o actual estado do mundo, no intuito de reunires a maior informação que há
- Guida, onde está aquela capinha de cartão?
- Qual capinha?
- Aquela que vi outro dia, trouxeste do teu escritório…
- Tem as facturas e outros documentos guardados, para a declaração de impostos…
- Dá-ma.
- Para quê?
- Quero fazer um dossier.
e eu à volta das pataniscas de bacalhau que se agarram à frigideira, mal espero o fim do mês para a trocar por uma aquelas em que se estrela um ovo e o ovo a nadar sobre a água do anti-aderente, não tendo pachorra para essa coisa de dossiers e conflitos e mais o raio que os parta a todos, queria era ver se me davam dicas do que vou fazer agora com as pataniscas queimadas, na altura em que tu, muito apressado, te sentas à mesa, colocando o som da tv mais alto, e a rabujar com o jantar
- Isto são pataniscas que se apresentem? Tudo a desfazer-se…
engolindo o primeiro copo de vinho
- Viesses tu fazê-las!
enquanto a nossa filha aflita com mais nada senão o zunir do telemóvel sobre a mesa, à guisa de novo talher, a empurrar com nada o garfo sobre o arroz que se espalha pelas bordas do prato, pescando a patanisca inteira para a levar à boca na qual fica um pedaço e o resto cai onde calhar, e sem tirar os olhos do pequeno ecrã. E por mais que eu
- O telemóvel não é para trazer para a mesa!
não adianta. Se lhe perguntassem de que cor são os olhos da mãe ou as paredes da casa, ela a desenhar pontos de interrogação após as letras WTF, de maneira que eu, já nem querendo saber da pequena
(uma calmeirona de quinze anos, mais alta que tu)
nem de ti que, embora tenhas reclamado, engoles com toda a pressa o arroz e as pataniscas empurradas com mais três copos do vinho, advertindo
- Amanhã não te esqueças de comprar mais desta pinga.
de perna pronta para trocares a mesa pelo sofá onde dás largas à tua posição de observador de negócios estrangeiros; enquanto tudo isso, portanto, eu, adiantando-me a ti e também advertindo a gandula míope da nossa filha sobre o telemóvel
- Isabel, depois arruma a mesa e coloca a louça na máquina!
sem obter resposta ou reacção alguma
(não é que fique à espera, muito sinceramente),
levanto-me da mesa sem tocar no jantar que eu
(ou melhor: a frigideira
isto é: eu, já sem paciência
vá: eu sem paciência para a frigideira),
acabei por deixar que se queimasse, enjoada por verificar que vocês ainda conseguirem levá-lo à boca, saio para tomar banho e descansar as pernas, estendida na cama, que o meu dia foi longo, desde as seis da manhã
(como todos os dias).
Claro, já sei que, quando me levantar para a nova jornada, estará à minha espera a mesa por levantar, a louça por meter a lavar, a matrona aferrolhada no seu quarto em pantanas, com os auscultadores enfiados na cabeça, a escutar sabe-se lá o quê, pelo menos amanhã não terá que demorar séculos a acordar como nos dias de escola.
E tu, o mais recente especialista em negócios estrangeiros cá do bairro, adormecido todo torto no sofá com a tv ainda ligada.
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imagem de T. Bondarenko
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