digam-me



O que soa a absurdo em mim por querer saber quem ainda sou para os outros? Será o abandono das mãos sobre o colo, como camiliana dama? Será pelas rugas que vão sulcando o meu rosto? Será pelos lábios finos, como que comendo em silêncio mesmo com nada na boca, só os cálculos tártaros de entre os dentes? O que se consumiu em mim para consumir os outros de tamanha impaciência? Digam-me, por favor. É pela roupa fora de moda estendida nos fios no ar quando faz sol? Digam-me: é pelos filmes a que assisto numa soturna e velha sala de espectáculos? O que há em mim que vos desespera? Será pela matinal e terna rega, entre palavras murmuradas, dos meus vasos cuidando que flores sejam um dia? Ou pelo gato que espera várias horas até que, na vez de aquele miar estranho, ronrone quando lhe deito comida? Numa espera em que ele paciente ou impacientemente se fixa em mim, sem eu dar conta, enquanto vejo as manhãs e as tardes e os serões na tv? Digam-me, vá. Será pela tosse que me ataca quando apago a luz do abat-jour e tento esconder-me entre os lençóis de coralina? Quero perceber porque tanto de mim vos soa a absurdo, já desesperada e solitária entre o emaranhado de tanta insinuada amizade, quando coloco os dedos a procurar nas redes sociais quem me diga de que tamanho sou. E por que sou. Ou pior: a pensar se ainda sou. A filosofia, lembro-me, não previa uma coisa assim. Por isso, o meu apelo: digam-me. Digam-me se devo morrer e deixar este gato esperando outra morte, a da fome por abandono não premeditado.


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foto de Emma Gardy

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