desperdício


Chove sobre o meu copo. Chuvadas de inverno, frias – tristes. Chove sobre o meu copo e bebo avidamente as agruras de janeiro para me esquecer do resto do ano por vir, como que precipitada a um qualquer fim premeditado. Não sei exorcizar as sombras impostas, parindo os demónios da minha alma grávida. Porque nada há aqui de novo, ou algo que se assemelhe a

pétalas. Escrevia tantos poemas na floração da primavera! E ele confessava-me

amo-te

como se eu fosse capaz da maior das epopeias. Havia sol sobre a relva e o roseiral, nenhuma nuvem. Mas, mesmo quando uma ou outra, passageiras, carregando partículas de mar do ocidente, choravam sobre esta casa, embebecia-me a observar os pequenos pássaros beberricando e a sentir o forte aroma da terra sedenta.

Ele estava lá, era um daqueles pássaros, agradecido com a estalagem oferecida, longe da ligeira intempérie.

E agora tanta chuva para palavras murchas à espera de que outra primavera traga a semente do sentido para tudo. Sufocada por este tom grisalho, bebo. Bebo e chovo, igualmente, sobre o copo. Mais nenhum

amo-te

ouvi, porque não fui capaz de palavras mais altas senão em sonetos mal conseguidos, num tom languido que previa o fim da estação estival. Nem ia a festas, sociais ou de ocasião. Dizia

és livre

e livre foi ele, como pássaro que procura em outras latitudes o bebedouro das chuvas entre dias carregados de sol. E lá se foi ele, sem nunca lhe ouvir um canto. Apenas

amo-te

num chilreio quase imperceptível entre os dos outros pássaros que eu também pude e quis acolher

(igualmente livre me confessava)

na minha cama.

Não sei por que migram os passarinhos

como ele

não são aves grandes, capazes para longos vôos. Eu acreditei que bastaria a pequena casinha de madeira com buraco no meio, entalada entre os ramos das árvores do jardim, um pauzinho como poleiro onde sempre o havia de encontrar, procurando pela semente que lhe dava, ambos agradecidos a deus. Ele, que tudo via em mim, em todas as palavras que eu escrevia, uma a uma, sobre papelinhos, bilhetes placidamente deixados ao acaso para brincadeiras que acabavam em cópulas desenfreadas sob o calor da fria luz pálida da lua cheia.

Nem estrelas distantes nem céu algum posso agora ver, por distração. Bebo como chove, chove como choro. O quarto com a cama desfeita por nenhum êxtase, nenhum rastro de suor a dois. Apenas o sinal das minhas insónias.

Por que razão me distraí, assombrada pelo primeiro relâmpago? Vi-o, luminoso, maior do que a luz crepuscular daquele fim de tarde, com as primeiras gotas ameaçando

eu sabia, como se o tivesse escrito,

e das ameaças se tornou no retorno do fim de tudo. E mal percebi que era luz para me engolir na sombra que depois veio. E ficou. Como as chuvas frias – tristes – deste inverno. E o meu corpo inteiro à mercê do copo que se finda para que eu, sem ouvir

amo-te

me remeta a calcular os dias para o seu regresso. Decidida a acreditar que as aves migratórias sempre regressam, e as mais pequenas

como ele

ainda mais cedo. Por essa esperança, encho de novo o copo com os meus olhos na chuva, 
deixando os poemas e as epopeias para melhor oportunidade que, eu sei

está escrito,

voltarei a desperdiçar, se de grande engenho nunca fui dotada.


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(foto de autor desconhecido)

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