versão
Diz aos miúdos que as pedras sucumbem à gentil picagem da água, e que a horta acabou extinta, mais o que sobrou do roseiral enorme e em decadência, e tudo se afoga nas chuvas outonais, com a tarde descendo na mesma hora em que quando era verão se sacudiam outras águas – as do tanque, as dos riachos, as das lagoas, as do mar sereno, quando as rosas floriam, todos os dias.
Tens coragem? De dizer aos miúdos que agora, no último minuto do sol caindo, nenhum lilás no céu para dar lugar a uma abóboda estrelada? E que os sons das gotas da chuva são golpes de aflição dos meus olhos entre o rosto de barba por fazer e uma boca que tenta respirar por tubos na vez do nariz?
Vai lá. Diz-lhes que a terra foi preparada para engolir o que eles de mim deixarão de ver. O que eles de mim estão deixando de ver. O que eles de mim já nada entendem. Que os tubos enfiados em meu corpo não são de qualquer cena sci-fi de um distópico-apocalíptico enredo de série em streaming.
Diz-lhes: é real, é verdadeiro. E deixa que chorem, para que com o seu pranto aprendam, pelos anos que forem necessários, a libertarem-se dos pesadelos sob o escuro, sacudidos e ofegando a meio da madrugada:
- O Pai? O Pai!…
Diz-lhes também que eu sempre acreditei nos ciclos. Obviamente que já não regresso, mas… diz-lhes que, ainda que seja mentira eu vir a ser mais uma estrela no céu, verdade será que eu continuarei no vento, na ondulação do rio, no primeiro raio de sol assomando nas janelas dos seus quartos. Que é nesse ciclo em que eu acreditei e no qual me quero manter.
E que de igual forma estarei ali na terra: húmus, semente, caule, flor e fruto. Pó, mineral e raiz. No transformar da coisa daninha em coisa alimentar. E que saibam, assim, fazer perdurar a minha vontade, a minha natureza, a minha memória.
Diz-lhes que isso, anos mais tarde, mitigará os medos. Que eu estarei onde eles estiverem. A morder laranjas enquanto não passa o inverno. A sorver amoras quando do calor do verão. E serei verde e castanho, sumo de fruta vermelha e vinho novo, entre o verde ascendente e descendente dos equinócios.
E, quando te for possível, vai dizendo-lhes, devagarinho, em tom de parábola, que fui por causa de um ouriço. Mas garante que não há razões para temer os ouriços. Apenas que fui atrás de um, com muita cisma. E que eu disse: os ouriços picam, mas podemos colocá-los na palma da mão, para observá-los delicadamente, e delicadamente neles não nos picarmos, delicadamente devemos devolvê-los ao chão.
Versão da minha morte que, certamente, qualquer dia ou maturidade, lhes revelará a realidade por eu já cá não estar.

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