como se fosse possível


Entra, por que hesitas? É do brilho extinto nos meus olhos? Ou da febre que me cobre o corpo em espasmos? Vá, por que não entras? Esperei-te anguloso por meus ossos salientes, os acordes dos cães lá fora soam a estridência enquanto a água começa a cair devagarinho num suspiro dos céus, das nuvens contraproducentes com a estreita alegria que teria para uma tarde de sexo encomendada. Aquela soturna janela é como um encosto, outrora discorrida pelos penetras e voyeurs, junkies como eu; e lembro de uma colega tua, muito novinha, com seus braços juntos apertando as mamas. Paradoxalmente tímida e ousada, magnificente voluptuosa e atrevida. E eles, mais gulosos do que eu, lá a levaram à minha revelia, e foi notícia de jornal, violada não sei quantas vezes, morta já nem me lembro como. Não sei se soubeste. De nada fui acusado, já que nunca me concebia ser cúmplice disso…

Mas… entra, entra lá, que não te faço mal, já tapei a janela, ninguém nos verá e não deixarei que cá venha alguém. E não há mal nenhum na agulha poisada entre a parafernália espalhada ao largo do colchão, aquela colher escura de tanto caldo, os elásticos, o limão já com arestas de bolor. Entra, chamei-te como minha redenção à renda de dez euros cada hora. A mim basta-me meia-hora, ou nem isso. Que te assusta em mim? Ou é este gato preto moribundo à porta? Nenhuma distância tem agora ele para percorrer, mostra sofregamente as garras com medo das últimas ameaças, e bufa constantemente, cego da morte. Sabes que a morte cega? Cega-nos os olhos para fora, mas vislumbra-nos com o que temos ainda dentro.

Vá, entra. Por que hesitas tanto? Sou apenas mais um entre esses outros a quem dás redenção. Ou é uma semelhante redenção que procuras? Desistes? Mas desistes do quê? Do que és, do que fazes, quando também tu queres o mesmo aconchego, a mesma redenção? Somos ambos de uma pátria sem nome, uma casa com pouco telhado. Imaginas apenas uma onde haja pelo menos uma mesa e uma jarra onde possas colocar as flores que roubas num desses jardins alheios, a fingir que tens um lar. A minha casa não tem telhas fora do sítio, aqui não pinga. Tem mesa, mas não sei se existe algures uma jarra, ou o estilhaço de algo parecido. Serve um frasco de azeitonas vazio? Tem um tapete cansado por tantas vezes que entro e saio, entre resignar-me ficar aqui apodrecendo e a coragem de sair lá fora, a mendigar moedinhas negras com argumentos toscos de fome, ou da viagem longe que urgentemente preciso fazer, não vá morrer um pai, uma mãe, um irmão, um amigo, sem a minha última despedida.

Entra lá, que aqui à porta vou ficar nervoso ao perceber o nojo dos outros apenas porque pedi ajuda a uma puta para não me sentir só. Não temas o meu olhar negro e abafado, as nódoas dos meus braços, o cabelo e barba num desalinho de lêndeas e gordura dos restos do que como, encontrado no lixo dos outros. Não foi assim também contigo? Nem te assustes com o gato que já não mexe. Não tenhas medo à agulha, já mergulhada em mim novamente numa qualquer veia. E não, não entres só pelo sexo que vendes. Entra, talvez possamos entardecer com amor. E, como se fosse possível para ambos, eu não pago o serviço além da hora combinada – lá me entenderei com o teu chulo – e tu desenlaças o garrote do meu braço as vezes que for; pode ser?


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foto de Artur Barczyński

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