entre o milho, um conto


Tino, diminutivo de Altino, era como chamavam o caseiro e agricultor que trabalhava e tomava conta dos imensos terrenos estendidos pela encosta do centro da aldeia até à margem do rio. O proprietário exilara-se quando do conturbado ano de 1975, sem razão aparente para tal, já que os seus servos ou empregados lhe fossem mais fiéis do que os cães que levava para a caça. É que, naquele tempo, há cinquenta anos, o medo de quem detinha as terras, sem nelas deixar cair uma única gota do seu suor, explorando os jornaleiros que as amanhavam e vinham depois colher o fruto (nunca para seu proveito), era um medo comungado pelos patrões do país recentemente livre da mordaça. Temiam muito quem trabalhava, temiam muito os que, vivendo na miséria, lhes proporcionavam os luxos e que, depois da Revolução, já podiam reivindicar salários e tudo o que lhes fosse justo obter, até mesmo a terra onde trabalhavam. Então, esse senhor da terra e sua família fugiram, deixando o pai do Tino, então já muito velho, a cargo dos terrenos deixados.

Era o senhor Aurélio, que tinha três tristes filhos sem vocação felina para serem, segundo o desenrola-línguas, três tristes tigres. Otília, a única rapariga nascida entre dois irmãos, era a tola da aldeia. Não era muito vista, mas quando surgia, nas manhãs de domingo entre nevoeiros e pregações do padre, acenava a toda a gente dizendo:

- Olá, estão a ouvir-me? Eu sim, e tu, estás a ouvir-me?

e as pessoas a quem ela se dirigia, sem entender o que aquilo significava, riam-se, rematando:

- Coitada da Tila Tola

outro diminutivo, e alcunha. Irmã no meio dos dois rapazes: Tino, ou Altino, e o mais novo, cujo nome com um cariz nobre – Afonso –, era mais conhecido pela alcunha Fuma-Sapos, por ter a única distracção de colocar todos os sapos que encontrava (também rãs, ele não sabia distinguir) a fumar as beatas deixadas pelo avô, até incharem de tanto fumo e se esfumarem (isto já é lenda, nunca ninguém viu os sapos sequer inchando).

Em muito resumindo, diga-se apenas que cresceram os três irmãos sob desgraças de vícios, morte prevista de velhos e outra, nunca esperada, de novos, entre atitudes extremas. Então, de desgraça em desgraça, acabou por ali ficar apenas o Tino. Só, a tomar conta das terras. Sentia-se o verdadeiro dono delas, pois trabalhava-as para o seu sustento, já que o único herdeiro e proprietário pouco quis saber da propriedade e da renda que dela podia obter, continuando longe no estrangeiro. Ora, o Tino casou-se e teve uma tríade de filhos, com a Emília, ou a Mila Leiteira que, tal como ele, herdara ofício dos pais, pequenos produtores agrícolas e distribuidores de leite. Juntou-se tudo no útil, e ambos levaram a sua vida, pobres de espírito com filhos maltrapilhos de monco pendurado no nariz. Ocupavam uma parte habitável do velho casarão cada vez mais em ruínas, comendo e dormindo eles junto do gado. Não é que tivessem dificuldades financeiras naquela altura, apenas porque vindo de famílias disfuncionais e sem noção das mais básicas regras, desde as higiénicas até às do foro social, Altino e Emília, sem outros parentes que os aconselhassem, não sabiam governar-se ou educar os filhos, segundo as normas sociais mais básicas, pelo que são muitas as razões para que tivessem poucos amigos entre a vizinhança e vivessem em quase total isolamento.

Nunca viveram, Altino e Emília, uma relação consensual. Ora se viam como irmãos que partilhavam desgraças da vida, ora, pelo ímpeto da natureza, se viam enroscados (sem se libertarem completamente das roupas), numa certa loucura muito rápida de satisfazer os desejos da carne, como se tratasse de qualquer outra necessidade biológica mais recorrente. Foi assim que ela engravidou do primeiro, do segundo e do terceiro filho. Mas a Mila Leiteira, à terceira vez, vendo que os seus seios concediam o que as vacas davam aos novilhos e vitelas, começou aos poucos por preocupar-se mais com a sua prole e o gado, em vez de ceder tanto aos desejos do companheiro. A ele, por estas e outras razões, obrigado a recalcar aquele desejo de uma fêmea, foi-lhe crescendo a curiosidade sobre outras mulheres. Mulheres vizinhas e de passagem, que sempre lhe foram indiferentes, até que as circunstâncias e a atitude de Emília mudassem a sua perspectiva.

No entanto, para Altino, era muito difícil passar do cumprimento para os detalhes íntimos. Olhava, com curiosidade de macho, as mulheres que se cruzavam com ele

- Bom dia, Tino!
- Olá, bom dia, Senhor Altino!
- Tudo bem, Tino?

recorrendo aos atalhos que existiam pelos trilhos entre os seus campos, ligando duas das ruas principais da aldeia. Não sabia como se fazia tal coisa, nunca soube seduzir, não socializava. E as mulheres, para ele, eram apenas aquelas que atalhavam pelos seus campos, a caminho do autocarro para o emprego na vila ou para o pequeno mercado local. A maior parte eram senhoras de idade já avançada, que o conheciam desde menino, e pouco mais de uma mão cheia de outras entre os 40 e os 60 anos. Evidentemente, como é normal nas aldeias de poucos habitantes, conheci-as, e sabia-lhes o nome.

Entre essas mulheres, uma lhe causava peculiar curiosidade. Era a Arminda, que trabalhava na câmara municipal, lá na vila. Uma das que seguiam junto ao milheiral, de segunda a sexta para tomar o autocarro que ainda percorria uns doze quilómetros. E, aos sábados de manhã, seguia pelo trilho que desembocava junto ao mercado. Altino observava a Arminda, por todos conhecida por nunca ter casado, e vivia solteira, numa das casinhas ali perto. Observava-a muito curioso: a forma rechonchuda do corpo, peito gravemente avantajado, a sua forma alegre de cumprimentar e mesmo de falar, quando a via na companhia de outras. Se o Tino soubesse o que significaria, poderia dizer para os seus botões que já há uns tempos se sentia atraído pela Arminda. Ou mais do que isso: apaixonado seria a palavra que usaria, se soubesse ele que essa palavra era a mais correcta para o que sentia.

Ora, a Arminda, solteirona da aldeia com quarenta e poucos anos, a viver com um tio velho e acamado, tinha vivido os seus dias de juventude muito folgados. Apesar de ter nascido e crescido na aldeia até aos seus quinze anos, mudou-se com os pais para a vila, tendo mesmo até frequentado o liceu. Segundo certas línguas que lá sabiam o que destilavam, não era intenção da Arminda frequentar a escola para exactamente para se instruir. Seguia os conselhos da mãe, que queria que a filha pudesse ter uma vida melhor, mas Arminda, embora aluna mediana, desleixava os estudos, porque o que ela queria mesmo era conviver com os rapazes.

Diziam que Arminda, apesar de folgada nas convivências, esperava encontrar alguém com quem casar e lhe desse vida fácil. Então, considerando talvez que não tinha tempo a perder, lá se enroscava, literal e metaforicamente, com qualquer um dos rapazes que ia conhecendo. Porém, apesar da fama de se dar com todos, era rapariga – e depois jovem mulher – de muita exigência para escolher quem de facto a pudesse acompanhar para o resto da vida. Assim, vivia experimentando este e aquele, que logo lhes dava com os pés, mal sentisse que não cumpriam as suas exigências. Só não previra Arminda que acabaria por andar dessa forma até o pai contrair fulminante doença e, após essa morte adivinhada, a mãe se lhe seguir por desgosto, em muito pouco tempo. Portanto, entre os rapazes com que se envolvia, rejeitou todos e nunca encontrou um em quem acreditasse. Após a morte dos pais, acabou por regressar à aldeia natal, desamparada. Ali, os rapazes que viraram homens mais ou menos da sua idade, eram muito tacanhos para o seu gosto e, ainda mais, raros e já comprometidos. Órfã, e para não cair em desgraça maior, Arminda viu-se forçada a morar com o único familiar vivo, um tio que lhe garantiu o sustento, e até mesmo o emprego que conseguiu depois na câmara municipal. Porém, as maleitas da família perseguiam-na e, embora tivesse continuado na senda de um homem que a pudesse levar mais longe, viu logrados os seus intentos quando o tio entrevou de cama por doença nos ossos e foi esquecendo os sonhos antigos para tratar do velho.

Na aldeia era falada como aquela mulher muito vivida, que bem conhecia os homens. E os homens, todos de fora, eram sempre possíveis candidatos para que a sua fama continuasse, tanta era a vez que a viam acompanhada por desconhecidos aqui e acolá. Em suma, era a solteirona que ia com todos e com nenhum ficava. Os mexericos acabaram por chegar aos ouvidos de Altino, e por isso passou a ver a Arminda como a mulher que, embora já não nova, mas longe de ser velha, podia ajustar-se às suas necessidades de homem rejeitado pela companheira, quem só tinha olhos para os três filhos que pariu e as suas vacas leiteiras.

O dia em que Tino foi informado – não se sabe por quem – que os seus irmãos tinham morrido, foi nessa época, um mês de setembro muito quente. Tanto Afonso o Fuma-Sapos, como a tola da Otília, tinham morrido ambos em situações insólitas. Afonso, que se havia rendido ao álcool do vinho e dos bagaços, foi encontrado num charco de borco, agarrando ainda firme na mão esquerda um maço de cigarros. Morreu afogado em águas nada profundas, na sua louca perseguição aos batráquios a que insistia querer inchar-lhes de fumo. Já a Tila Tola, conversando sempre consigo mesma ou com quem ela imaginava, tropeçou numa dessas vozes enquanto caminhava distraída pelos jardins da casa de saúde onde tinha sido internada ainda pelos pais vivos e, na queda, bateu com a cabeça na esquina de uma pedra grande, tendo assim ali perecido. Dois meses passaram entre estes dois episódios e mais um até que alguém fosse dar as más notícias ao irmão sobrevivente. Embora tivesse Altino esquecido a afinidade pelos irmãos que, após a morte dos pais, raramente via, o peso emocional de saber ter perdido para sempre aquela ligação antiga e muito ténue com a sua infância acabou por influenciar o discernimento do agricultor que, já percebemos, não era muito afinado.

Sentia uma sensação de abandono: o resquício do seu passado esfumava-se, a sua mulher e os seus três filhos apenas lhe grunhiam na hora das refeições, mais entusiasmados com o gado do que com ele. Pelo que, Altino, nessa sensação de orfandade, abandono e menosprezo, tivesse optado pelo milheiral quase como casa: ali comia, ali dormia, fosse tarde ou noite, ali via o sol nascer e depois poisar, ali ouvia os insectos e aves nocturnas estridindo ou sibilando, ali observava, pela manhã e ao final da tarde, as pessoas que atalhavam pelos trilhos dos seus campos para onde tinham de ir, e ali se deixou apaixonar pela Arminda, aquela mulher que ele tanto apreciava. «Se não tiver aquela mulher nunca serei um homem completo», pensava Altino sobre a Arminda, não com estas exactas palavras, mas outras que ele pudesse dizer. Enfim, era a solidão daquelas noites quentes que tolhia o pouco da razão que ainda podia ter. Parecia-lhe impossível continuar ali entre o milho, longe de tudo que pudesse censurar-lhe os apetites recalcados, sem concretizar o desejo que há muito sentia, insaciado.

Naquele dia de manhã, a mais de metade do mês, com o milheiral já alto, Tino acordou torpe após mais uma perturbada madrugada em que, rodeado pela escuridão e pelo seu crescente desejo, tentou alívio em vão. Já não lhe saía a Arminda do pensamento, nem dos sonhos. Tinha dormido quase com a pele do corpo junto ao humor da terra, tão desalinhado das poucas vestes que o cobriam. Esfregando o rosto, pensou que aquele seria o dia decisivo, pelo que esperou pela hora certa, desejando que a Arminda passasse, daquela vez, sem companhia. Mais rápido do que o seu pensamento sobre essa circunstância, foi ter ela aparecido, sozinha, na esquina do trilho entre a descida para a estrada e a porção do milheiral onde ele estava instalado. Assim que viu Arminda assomar, não hesitou: Altino desceu as calças, já sem nada que lhe tapasse o peito peludo, e gritou:

- Ó Armindinha! Venha cá abaixo!

Embora não fosse imediatamente perto do milheiral o trilho por onde Arminda estava a passar, podia ver claramente o enorme pénis de Altino erecto, com uma das espigas do milho que o rodeava, mas mais brilhante e de um vermelho muito intenso, com a incidência da luz do sol sobre o lugar onde ele estava e assim se exibia.

- Oh, raios partam o diabo do homem, parece maluco!

exclamou a Arminda ao ver aquele espectáculo, hesitada perante tamanha encruzilhada: a do terreno e também a da sua mente, pois já não via a intimidade de um homem há muito tempo, ainda por cima assim oferecida e com aquelas proporções. E o Altino, sem se mover, insistia:

- Venha, Armindinha, venha cá abaixo ter comigo!

Precipitada pela vergonha de que mais alguém pudesse ouvir aquele chamamento e ver a figura do homem que a convidava, Arminda seguiu ligeira para a estrada, fingindo nada ter visto ou ouvido. E lá foi, com o passo estugado, resmungando pela sua sorte, confusa com aquela imagem, alarmada pelo choque de sensações que lhe causara tal vista. É que o Altino podia ser um homem rude, de poucas palavras, não muito limpo, ele e a família – todos os conheciam. Porém, a natureza dera-lhe a felicidade de uma razoável aparência física, e também, congeminava Arminda enquanto se distanciava daquele cenário, a natureza fora generosa ao dotar Altino de coisa que se visse, rara nos homens que na juventude e depois tinha conhecido. E com este pensamento riu-se de si e para si. Foi mesmo com satisfação nesse constatar que subiu o autocarro que a levaria ao trabalho.

A ingénua simplicidade de homem ignorante e grunho que caracterizava Tino fez com que entendesse a opção de Arminda como uma grave afronta, um choque para a sua condição de macho necessitado e rejeitado duas vezes. A primeira, de muitos meses, pelo desinteresse e mesmo alguma repugnância de Emília quanto ao contacto íntimo, e agora a da mulher que tantas vezes viu passar por ali, por quem se sentia apaixonado e lhe compunha as fantasias. Irado, destruiu logo ali uns quantos pés de milho que tombaram à mercê da força das suas mãos e braços. Como continuava de calças descidas, logo delas se desembaraçou, e foi correndo todo nu, entre o milho que tombava, urrando como besta provocada e ferida, sem entender o que sentia, e por que razão Arminda não tinha respondido ao seu chamamento, se ela afinal gostava tanto de homens, segundo o que se dizia em toda a aldeia.

Só parou diante do pequeno riacho que atravessava a meio as terras ao seu cuidado. Para trás era o milheiral, depois era vinhedo e pomar. Ao assomar ali, deixando um rasto de trezentos metros de milho tombado, como quem desbravasse mato para fazer um caminho, alvoroçou uma meia centena de pardais que ali bebiam e se encharcavam de água. Parou, olhou a água que corria quase sem ruído, e deixou-se cair de joelhos. Não porque estivesse cansado, longe disso – Altino correria a maratona mais longa para conseguir abater aquela aflição do peito. Foi por ver a água no riacho, que lhe fez lembrar a desgraça do irmão Afonso o Fuma-Sapos. Para um homem da condição, história e circunstâncias de Altino, a morte era apenas um facto. Algo que acontecia com tudo o que era vivo: natural, inevitável e, em certas circunstâncias, até mesmo necessária. Era sim um homem básico e grunho, mas não deixava de ser um homem. E, como qualquer homem, mesmo que nele pudesse estar subconscientemente muito escondido, havia o pensamento, o querer entender, as emoções que, umas vezes controlava, outras nem sequer compreendia. Mas sabia. Sabia, na sua básica ignorância de instinto, o quanto as emoções o transtornavam, fossem elas positivas ou negativas – a reacção que teve após a atitude da Arminda era um sinal muito claro disso.

Compreendemos que, nestas circunstâncias, até o mais escorraçado cão seria capaz de actos contraditórios com a sua sobrevivência, pensados ou não. Mais não seja, o resignar-se ao fim. Mas um cão não sabe disso, a não ser aquele instinto ancestral dos lobos que, sentindo a sua morte, vai morrer longo. O nosso Altino, enfim, não sendo cão, é claro desconhecia por completo quaisquer dramas e tragédias da condição humana. Mas era, enfim, um ser humano como outro, mesmo por pouco que pensasse em outras coisas e situações que não fossem o que tinha aprendido de básico, como lavrar os campos e os cultivar, tratar do gado, o afecto de ver um filho nascer, a básica empatia de cumprimentar outras pessoas, a tristeza de se sentir ignorado pela mulher que escolheu para viver e partilhar o que tinha. Então, entendemos que este homem, portanto: um indivíduo que, possa embora ter fraco discernimento, é alguém que sente, e do que sente produz emoção e memória, e disso também faz as suas conjecturas, decidindo bem ou mal sobre o seu destino. Quando parou diante do riacho, alvoroçando o bando de pardais que naquela água bebiam e se limpavam, é perfeitamente natural que se tivesse lembrado da circunstância da morte do irmão, caído com o rosto dentro de uma pequena poça de água, muito embriagado e afogado por inconsciente não ter conseguido mover-se para evitar o seu fim.

Arminda, por seu lado, na sua rotina daquele dia, não conseguiu abstrair-se da surpresa que teve pela manhã. Foi um dia de fraca produtividade no trabalho, e ainda bem que ela não era uma operária fabril como a maioria das pessoas que tinham o seu emprego fora da aldeia. O seu trabalho era bem mais simples, na câmara municipal: atender os munícipes, papeladas de atestados e requisições que lhe saiam das mãos para percorrer um caminho entre o gabinete da sua chefia até à sala grande onde estava instalado o presidente da edilidade, homem de aparência velha e muito desligado, que só assinava, sem muito preocupar-se em ler o que endossava.

Só a igualmente velha dona Conceição, secretária do presidente, era a mais exigente: percebeu uma confusão de papelada que vinha do gabinete onde Arminda trabalhava e foi ela própria, concluindo de onde vinham os disparates, quem deu o raspanete directamente à distraída. Arminda desculpou-se falsamente pela condição de saúde do tio, que muito a preocupava e, ainda que a velha Conceição fosse exigente com o trabalho, entendia os problemas particulares dos outros. Por essa razão, crendo que o trabalho que orientava com tanto zelo só seria bem feito quando quem o executasse estivesse bem concentrado, preferia dispensar aqueles quem, por graves razões particulares, não dariam a esperada vazão. Ou seja, a exigente dona Conceição, por trás daquela austera postura, era uma mulher de coração puro e experiente, compreensiva.

Assim, viu-se Arminda dispensada do trabalho duas horas antes do fim do expediente na câmara. Quis correr, e correu, para a paragem onde normalmente apanhava a camioneta que a levaria de volta à aldeia, só que não era ainda a hora. Nenhuma camioneta havia para ela, naquele momento em que fora dispensada por tanto pensar em Altino e do que nele viu, manhã cedo. Expedita como era, não seria o horário da camioneta que a impediria de voltar à aldeia. Com meia dúzia de palavras e promessas falsas, conseguiu com que um dos motoristas de praça, logo ali em frente ao edifício da câmara municipal, a levasse, sem sequer pagar. As vantagens de uma mulher sempre alegre e prazenteira, pensava ela, suportariam qualquer urgência! E qual era a urgência da Arminda, afinal? Isso questionava ela para consigo mesma, quando, naquele afã de encontrar rápido transporte que a devolvesse à aldeia, nem lhe dera tempo de raciocinar. Claro, que outro motivo a movia? Altino, e aquela imagem pela manhã, ele e o seu membro, entre o milho!

Sexta-feira, cinco horas daquela tarde de setembro. Tudo aparentemente quieto nas terras que Altino fizera suas. Apenas uma diferença em relação ao dia anterior: o milheiral tinha um fresco trilho aberto, até aos pomares, com o riacho que fazia fronteira entre ambos os campos. No velho casarão, poucos passos a norte, Emília e os três filhos estavam como sempre concentrados na ordenha de duas vacas. Uma delas dera um coice ao mais novo dos infantes, e a Mila Leiteira teve alguns momentos de aflição. Nada de grave, a pequena Altina apenas afundara na leve palha, queixando-se de dores na barriga, mas Mila percebeu que era apenas do choque. Do pai dos filhos e seu companheiro, o Altino, nem se lembrava. Há dias sem o ver em casa, mas nenhuma preocupação. Um homem entregue ao trabalho é assim mesmo, acreditava ela.

Já Arminda se sentia muito inquieta, com uma estranha preocupação crescente, sem saber o motivo. Nem sequer seguia com atenção o palavreado do taxista que ela convencera a levar-lhe à aldeia por troco de ninharias que os homens gostam de ouvir, e só agem pelo que ouvem. A sua inquietação não era só pelo que vira, e daquele chamamento de macho no cio. Era muito mais que isso. Talvez um leve remorso por não ter dado atenção directa ao Altino, quem ela, afinal, conhecia o suficiente, por observação e por ditos que corriam na aldeia há imenso tempo. Arminda era uma mulher muito prática, porém, sempre atenta e empática para com os outros. Era mulher de não fazer juízos, quiçá pela percepção dos juízos que outros faziam dela. Sabia como eram e como a magoavam, pela injustiça, por não compreenderem as razões.

Cinco horas eram e Arminda, contrariando as intenções do taxista em deixá-la à porta da casa

(ou seja: intenções mais alargadas por fantasia das falsas promessas com que se convencera a ceder, gratuitamente, a viagem que a mulher lhe tinha tanto rogado),

saiu do táxi mais ou menos no sítio em que ainda percorreria um pedaço a pé, entre os campos do Altino, a caminho da casa do tio que era a dela. Não foi pelo recorrente percurso que naquela tarde decidiu optar. Parou naquela encruzilhada, onde tomaria para oeste o caminho normal e, a sudeste, os imensos campos que Altino cultivava. Logo ali, o milheiral. Arminda ficou admirada por ver o longo e novo trilho, com os pés de milho tombados, seguindo para norte. Ainda chamou:

- Tino! Tino! Ó Tino, onde é que você está, homem?

E lá foi Arminda pelo novo trilho feito, entre o milho, na ânsia de encontrar o que nem ela sabia bem. Mas foi, sem medo algum, como a mulher que era e da fama que tinha: que vai para onde quer.

A história podia acabar aqui. Mais nada de bom há para dizer de um homem muito simples, básico, que pouco sabia e/ou compreendia da vida; e de uma mulher que tinha sonhos a mais até se resignar a ser o que não queria. Ambos terminaram o que sentiam, digamos com eufemismo, entre o milho. O milho que, um mês depois, Mila Leiteira teve de colher. Altino acabou no cemitério, ninguém na aldeia soube por que razão falecera, mas bastava argumentar a história da família e tudo daí ficava explicado. Não para a Arminda, porém. Embora ela não pudesse saber disso, foi a última pessoa a quem ele se dirigiu. Mais: foi a única pessoa que o viu ainda em vida, antes de sacrificar com a sua fúria uns tantos pés de milho ao longo de trezentos metros, até ao pequeno ribeiro onde, depois dele, as aves continuaram, por necessidade natural, a poisar pela manhã para saciar a sede e fazer limpeza da penugem.

Quando Emília, a mãe dos três filhos de Altino, começou por estranhar a longa ausência do homem, decidiu finalmente ir à sua procura. Ajudou a esse impulso ter ouvido estranhos urros que nunca tinha ouvido antes, ali bem perto do casarão centenário em quase ruína total. Se sabia de todas as cabeças de gado que cuidava, que ou quem podia urrar daquele modo? Até lhe parecia coisa monstruosa. Ora, lembrando-se do homem pelos campos e quem já não o via há uns dias

(o que sempre imaginara era que o Tino vinha a casa todas as noites quando ela e os filhos já dormiam, e voltava para os campos antes que ela ou qualquer um dos filhos acordassem – era a explicação que tinha e que a despreocupava da ausência do companheiro)

tentou ir ao encontro dos urros, que lhe parecia virem lá do pomar… Mas, que animal seria? Nada assim tinha ouvido, pensava ela ensimesmada.

Com o sol da tarde já muito inclinado a poente, seguiu Arminda por aquele novo trilho que não existia na manhã em que viu e ouviu Altino a chamar pelo seu nome, possuído sabia lá ela do que fosse; coisas do diabo, ou dos homens, que vai dar no mesmo. Mas o que viu, confessava, tanto a enterneceu como a excitou. Ela sempre procurou os homens, mas nunca nenhum homem chamou ou esperou por ela, nenhum homem a procurou, de melhor ou de pior modo com que o Tino o fez, inusitadamente, naquela manhã.

Chegou ao fim daquele caminho novo, entre o milho tombado, e lá estava o riacho, que sabia ser o condutor da água que se acumulava no tanque municipal onde se lavava roupa, a poucos metros da casa do tio entrevado com quem vivia. Depois do riacho, já ela conhecia: era um pomar e um vinhedo de tortuosos troncos de muita parra e pouca uva. O agricultor tinha aquilo como enfeite, pois vinho dali nunca tinha produzido. A ramada ora era baixa ora subia emaranhada no tronco e nos ramos de dois choupos, um maior e outro mais pequeno, árvores que nascem e crescem quase do nada, desde que haja água por perto.

Viu o pouco natural desalinho da vinha, nas partes mais altas, com muita parra verde caída e alguns cachos de uva mal madura, tudo calcado e esmagado, no chão. E ouvia – já vinha ouvindo há algum tempo quando mais se aproximava daquele sítio – de uma espécie de choro, ou lamentação. Ais e soluços que só conhecia quando as carpideiras locais faziam o seu papel no velório de alguém que tinha morrido. O som, porém, não lhe parecia vir da capela, ainda mais que morto nenhum havia a velar – se alguém estivesse por morrer na aldeia, ela teria sabido, pelo menos na véspera ou mesmo no próprio dia. Eram lamentos que vinham certamente do casarão, ali à esquerda, a norte. Arminda ainda deitou os olhos sobre o cenário estranho da vinha desalinhada

(percebeu nesse momento no corte abrupto de um dos ramos mais grossos, lá no alto, antes de dar a volta ao tronco do choupo maior)

e seguiu o caminho para o casarão, já tão aflita que ia por aquela desordem e sua cada vez mais crescente inquietação, seguida de curiosidade.

O percurso era muito curto, tinha apenas de desviar-se: ora do pequeno leito do riacho, ora da desordem do arvoredo que seguia até à entrada do casarão. Logo ali, entre duas vacas, estava o mais velho dos filhos de Altino e Emília que, mal viu Arminda aproximando, anunciou numa voz de cicerone monótono e apático

- Morreu o meu pai, a minha mãe está lá dentro.

Os soluços da Mila Leiteira, sobre o corpo de Tino todo nu e por cima de medonho esterco feito pelo gado como leito de morte, não deixou dúvida alguma sobre o que segundos antes tinha Arminda ouvido da criança: Altino estava morto. E era perceptivel aquela nódoa de sangue pisado, um colar nojento à volta do pescoço do cadáver. Percebendo que outra pessoa, que não um dos filhos, ali viera presenciar a desgraça sobre a qual chorava há muitas horas, Emília, não deixando de soluçar, olhou para Arminda e conseguiu informar a visita:

- Foi pendurar-se na ramada das uvas e ficou assim com estes dois olhos bem abertos!

Nada mais havia por explicar ou perceber, pensou Arminda, de queixo bem caído e as lágrimas assomando aos seus olhos, perplexos por aquele espectáculo, que era o segundo e o final, depois do inusitado propósito da manhã, ao ouvir e ver aquele homem endiabrado chamando o seu nome. Que memória lhe tinha deixado o Altino agricultor! Bem cedo, prometendo delícias com o membro erecto e lascivo; à tarde, exibindo-se com olhos esbugalhados, morto, cinzento, com um colar de angústia pelo pescoço. Então Arminda, que desejou muito ter estado só a sonhar, sucumbiu ao desmaio, caindo ela também sobre aquele estrume, por tanta desgraça nutrido.


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texto sujeito a alterações

(foto de autor desconhecido)

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