vagido
Vagiu antes que findasse a tarde. E quando abriu os pulmões foi para anunciar-se ao mundo, tendo apreendido um outro mundo, essoutro mundo interior que o moldou e onde a escuridão era toda a luz que nunca mais viu. Quando, enfim, mal conseguiu abrir os olhos para as sombras que o rodeavam – a mãe ofegante, os lençóis tingidos, a janela aberta porque o outono cedera a um santo a promessa de um ligeiro verão, o vinho entre as castanhas, embora fosse a temperatura diminuindo por cada minuto que passava com o crepúsculo desenhando-se – quis tanto dizer o que boca e língua ainda não lhe permitiam verbalizar, pelo que vagiu com a certeza de quem não procuraria saber quem é, mas, enfim, notificar o mundo onde entrou de que um nascituro surgia para saber e entendê-lo, com dentes e unhas sobre pedra e sobre areia: do quanto tem ainda de esperança a humanidade, ou se já se rendeu moribunda. Terá essas e outras dúvidas humanas, ditarão os oráculos, e talvez venha a passar despercebido. E não padecerá a revelar os segredos que trouxe para aquela torre de narciso que o espera, onde terá incenso, amor e realização. Profetizam-lhe poeira densa que sobe dos desertos e se planta no sono dos mortais. Vagiu antes que a noite pudesse render a tarde. Nascido entre essa porosa incerteza, o mundo questionou-se como epifania que lhe ditaria os passos e as emoções: a quem vens tu agora, e outra vez?
_
(foto de autor desconhecido)

Comentários
Enviar um comentário