talento para dormir
Quando pouco resta senão ecos de uma penúria
(quantas penúrias tanta gente tem assim, minha querida, e não estão para tamanho arrelio?)
surge o nevoeiro para te confundir os olhos de esforço, e um frio súbito que a tua garganta sente, desesperada pelos soluços e pelo esgar do teu pranto de há minutos, como arame farpado arranhando. E ficas afónica, pelo que abres delicadamente a cama feita há duas ou três horas, repetes o teu corpo diante do espelho, ferves água para uma tisana com mel, preferes os estores recolhidos se já nada há para auscultares na janela, e reflectes se serão precisos os óculos quando olhas o volumoso livro de poesia que compraste há alguns meses, a custo dos olhos da cara, e que tens desperdiçado, já esquecida de o leres.
Pensas que tudo irás vencer, num dissoluto pensamento de resignação. Ainda assim, percebes que há nadas perdidos como monstros, pequeninas coisas dentro de ti que se convulsionam como a severa tribulação do mar contra as rochas. O nevoeiro lá fora e os ecos do quanto choraste: ambos ditam que já só pertences ao envelope da cama. Nele te remetes para os sonhos, quaisquer que sejam os sonhos
(sabes que há bons e maus os sonhos, mas são sonhos – são só sonhos, minha querida)
para vires a despertar poucas horas depois, sem teres dado pelo tempo que passou, o bocado de vida que te fez vil e amaldiçoada.
Despertarás então, espantada como o nevoeiro se rendeu ao sol. E também como, para lá da janela, o ruído da manhã silenciou o que te quebrou em pranto na noite anterior, afastando os ecos medonhos que tinhas dentro de ti.
Acredita: quando chorares assim, resta-te o teu talento para dormir. Outro dia se erguerá, diferente sempre do anterior, seja lá como for. Basta que o vivas como nova oportunidade. A esperança não tem a cor verde da inveja. Não, a sua cor é branca, do mesmo fulgor de cada despertar. Tenhas tu esse talento para dormir para depois acordares, discernindo que nem sempre o que parece realmente é.
_
foto de Dmitry Elizarov

Comentários
Enviar um comentário