distância incompleta


Alguém parou naquela estrada com a distância incompleta entre o que morre no outono e, irreversivelmente morto, finge que ainda vive no longo inverno. Folhas continuam tombando das árvores numa tristeza tal que é como se as próprias árvores tombassem, sobre as suas raízes, assustando o solo e aquelas aves migratórias por espanto da derrocada.

Nas janelas dos prédios, nenhum fumador. Do outro lado da rua e sob a chuva, frente à pequena vitrine de um tasco escuro, vinte e dois fumadores querem acender os seus cigarros, em série, enquanto o sabor do café com cheirinho lhes provoca a língua.

À vizinha do 3º esquerdo não lhe incomoda o frio: há duas horas que passeia o ferro quente e nervoso sobre tecido de dezenas peças de roupa. Ao lado, piscando, uma árvore de natal que será indiferente a quem habita aquela casa até que seja desmanchada a meados de janeiro. E um homem, de pé, gesticulando.

O inverno finge-se de coisa viva enquanto os mortos não acontecem porque o outono ainda os aguenta por alguns dias mais. Aquelas aves migratórias lançam gritos a quem passa. Quase como os gatos domésticos que, fora da casa onde pertencem, emitem miados lânguidos para reentrar no conforto, a fugir entre os pingos da chuva.

Os fumadores, como migrantes dos seus vícios, continuam saindo para a mesma chuva e insistem em acender o seu vigésimo-segundo cigarro em menos de quatro horas, após esvaziarem sucessivos dedais de bagaço dentro da tasca escura.

Ferro sobre malha fria é o sermão que o vizinho do 3º esquerdo prega à mulher que lhe faz os vincos das calças. Ele ralha e ralha, e o piscar da árvore de natal insiste em dar àquela janela, por onde tudo se observa, um acolhedor cenário doméstico. Porém, deixará de ser assim: por um impulso destemido dela, vemos a cara do homem pranchada pela sua engomadeira.

Sem muita paciência ou nenhuma, cerca de 45 ou 50 minutos depois, surge na estrada uma viatura de emergência médica, estridente com a sua sirene e em modo de farol azul que acaba por cegar de convulsão um dos fumadores-bagaceiros que desconhecia a sua condição epiléptica.

Vinte minutos passam e o homem-pregador sai numa maca. Então, outra sirene com os mesmos faróis azuis de tejadilho ali estaciona, para levar a engomadeira em fúria. Aquele décimo-quinto fumador-bagaceiro tem outra crise de epilepsia. Na maca arrumada na ambulância, grita o homem com tendência a colher o rosto com as mãos, e o paramédico ao lado com muito esforço físico o impede de tal acto.

Mas o problema nisto é que não pára de chover. Os céus são inundações no ar. Pelo que se questiona: como podem as migratórias aves seguir o seu rumo? No seu lamento de hibernação, as árvores despidas ainda lhes oferecem guarida nos seus ramos. Porém, aquelas aves, uma espécie peculiar de longas asas, não apreciam muito o nu, mesmo que seja artístico.

E seguem elas, enquanto seguem todos os intervenientes deste cenário, o seu rumo, por incompleta ser sempre a distância. Quer dizer: nunca há um destino, mas sempre há uma distância. E aquele que havia parado na estrada, a entender como se dá o inverno sobre o outono, deu meia-volta e foi resolver os nados-mortos da sua vida.

Apenas restam as árvores. Por muito esforço que tivessem feito, não saíram nem do lugar nem do seu modo de esqueletos no ar. Tão pouco puderam tombar no chão para chorar o último adeus às suas folhas caídas. A essas, no dia seguinte, irá o varredor recolhê-las em grandes sacos de lixo.

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