isso passa
O cinzeiro é um pulmão triste. Não há empatia na solidão. Qualquer cor que haja no céu, parece-te sempre que chove. E qualquer silêncio que imagines é um grito pleno de febre, raiva, medo e ódio. Se não de riso, dedos apontados a ti, completo escárnio. O problema é que deixaste de cheirar a pão. Não serves já nem de alimento para ninguém. Estás aí. Como soldado sobrevivente de uma emboscada, aterrorizado sobre os escombros de uma trincheira, entre lama e pedaços de cinza de que não sabes que fogo a produziu. Não há empatia na depressão. Ainda que te pareça estares constantemente constipado, gripado, à beira de uma fatal pneumonia
(porque chove sempre onde estás, estás sempre encharcado até aos ossos, como se os ossos)
ainda que grites de dor, ainda que o inimigo te tivesse ferido, ainda que a cinza entre a lama pudesse ser o resto dos teus dedos, nariz e orelhas que se queimaram, sem fogo, na tempestade invernia de neve e gelo à entrada de estalinegrado. Que dramático, dizem-te. E tu apenas a querer dar uma imagem, fazer compreender. Só que ninguém disposto a compreender, sabes apenas que tens um buraco no peito que só tu sentes e ninguém vê
(como se os ossos pudessem ser a única coisa visível de quem já só é cadáver)
e porque ninguém vê, toda a gente te diz que estás de perfeita saúde. Não sejas lingrinhas, não sejas maricas. Porém, tu aí, só, dentro de um buraco e com um buraco enorme. Olhas em redor e para cima, por baixo só lama, ou uma viscosidade negra que não sabes reconhecer, sem dares conta de ninguém. Sabes das vozes entre ordens e afirmações:
- Levanta-te daí
- Olha o sol que faz lá fora
- Distrai-te com alguma coisa
- Tens de comer
e tu não sabes o que dizem, não entendes o significado. Sabes que dói, sabes bem onde dói, e até apontas
- Aqui
mas o que só sabem fazer é dar-te palmadinhas nas costas e rematar
- Isso passa.
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foto de Rustam Rakhimov

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