quando assim ardes: três andamentos


primeiro andamento

Já me sentei e procuro a correcta posição na cadeira de escritório que subo e desço conforme o êmbolo e a mola permitem, é uma chatice isto do mobiliário antigo, coisas que vão perdendo a força original; e por falar em força, olha, já sabes que não te adianta vires com esse olho sedutor, mais as tuas mamas suplicando alívio sob o vestido apertado, sem falar nas tuas coxas que vão competindo com a tua anca

- quem o provoca mais neste vestido justo ao corpo?

porque, enquanto eu ainda vejo como me posiciono na cadeira, olhando para baixo e para atrás, medindo distâncias, nada feito, e desculpa se o beijo foi de fugida, é que a mola e o êmbolo, não sei bem como afinar, percebes?, tenho de ficar na posição correcta, assim como a dose no copo para me inspirar, e a cigarrilha para celebrar mais uma conquista, logo após o teclado, ou seja, entre o teclado e o monitor; e tenho esta coisa no olho, é uma sombra, e bem que precisei das sombras quando o sol, ainda que se fazendo de tímido entre a neblina, foi depois como qualquer um a quem se oferece um copo, e depois outro, depois mais um e lá está o fulano todo desinibido falando do que não nos importa ouvir; e foi assim que se fez o sol esta manhã para eu transpirar debaixo da camisola; não, espera, não pretendo despir-me, a sudação já passou, foi o sol a foder as ventas a três martinis que me pôs dessa forma, eu transpirando sob a camisola de outono enquanto estendia no estendal do jardim a roupa para secar


segundo andamento

e não sei nada da tua experiência em estender roupa a secar num jardim debaixo de um sol que resolveu desinibir-se e mandar para o caralho a estação das primeiras chuvas e do frio e das neblinas como as que hoje renderam a madrugada; mas, com certeza que entendes isso, deixa lá, percebi que, entretanto, já foste descalçando as sandálias em vez do sapato ou botim que protegesse os teus pés da chuva; e isto porque, já se sabe, um olho aqui e outro em latitudes onde tanto choveu, com dilúvios bíblicos, mortes e ed cetera; mas, vê lá, como insinuas o teu pé descalço desse lado da mesa, esse olho curvo glosando Éluard: é que foste tu que pediste, foste tu quem insistiu para que me sentasse à mesa a escrever, raios partam a mola e o êmbolo da cadeira, que todavia não consegui encontrar ainda a posição certa, e está o copo cheio, os cubos de gelo no copo à espera

- isso é para hoje ou não?

interpretando, qual cena dramática, as palavras que não têm paciência para os beijos que me colocas no pescoço, e a insistência das tuas mãos para que dispa o torso, abandonar a camisola suada pela desinibição do sol; e nisto já encontrei a posição ideal entre mim e o ecrã, mais o teclado e a cigarrilha à espera para festejar o melhor texto, mas são os teus beijos, e que farei quando assim arde o teu corpo se foste tu que pediste, se foste tu que insististe


terceiro andamento

de que me bastaria a música para que, em qualquer acorde, eu perceber o sinal, o ponto de partida, a primeira palavra, acaso as palavras tivessem acordado entre si qual seria a primeira, mas já sabemos como elas são, ora vou eu, ora vais tu e nenhuma concorda sobre qual delas em primeiro, pelo que, como hei-de eu escrever em concordância?, se venho desde as quatro da madrugada numa insónia não compensada a antecipar a alvorada discernindo a saudade desse corpo que parece que nunca mais vi?; é que se foi pelos sonhos, então merda, que os meus sonhos têm estado como as palavras, nunca concordam, e tu, tão aflita perante dilemas desta qualidade, desces as alças do teu vestido e logo a seguir arregaças a suas saias para mostrar mais do que as coxas, porque afinal o outono ainda confuso, que sol desta qualidade dá que pensar e suar, e eu já convencido, observando libidinoso a tua púbis descoberta, mandei foder a comodidade da cadeira, mais o ecrã difuso que me pedia que colocasse óculos, mais a cigarrilha adiada para outros feitos, eu apenas cedendo a um gole do copo para que me desse o fôlego que aqueles sonhos me convenceram já não conseguir e, enfim, entre um

- foda-se lá isto

ou seja

- quero lá saber

deixei de me preocupar em escrever o que eu entendia que era o que pedias e insistias para, em vez disso, preparar dedos e língua

acaso aquela força me falhasse

para te foder, incidindo-me sobre ti no colchão improvisado no chão onde tu estás apelativa sem o vestido que te apertava as mamas e as ancas; então: que faço quando assim ardes?


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foto de Henri Senders

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