véspera
Denso o musgo crescido entre outras manchas no muro. Os cães urinando de passagem nas vielas enquanto os gatos ali residentes suspendem a gula no lixo bufando-lhes, o bolor um outro artifício na tarde que morre plúmbea e tudo se deprime. Nenhum carro na modorra instalada porque sobrou o sono da véspera. Sabendo por senso comum que, aí dentro das janelas dos prédios, agora só gritos do silêncio por ser esta outra vespertina sentença dos resignados à labuta do dia seguinte. Veio o ocaso nem por acaso, lambendo de sombra essas paredes interiores, e faria total escuridão não fosse a boca muda e luminosa desses aparatos de tv; e seria o total silêncio não fosse aquele ferro de engomar bufando, como os gatos, sobre a prancha frágil alisando a rodilha dos tecidos, e os tachos arrefecidos do almoço familiar sem rugido do fogão a estrugir, não fosse assim um serão de domingo e por ser véspera de algo como o ontem de uma quarta-feira de cinzas após afeijoado carnaval. O queixo dos homens não escanhoado de dois dias a dilatar a mesma textura das paredes que se deixam verter viscosamente num lodo, as mulheres retratam-se entre a retrete para a dilatada urina e o bidé que serve para dissipar odores uma vez que, às segundas-feiras, nunca há peixe fresco. Os lábios lambidos no tormento das crianças, mordendo a tenra língua, para ultimar os estudos numa febre tensa como a trela dos cães aliviados quando regressam a casa, preparando o seu lamurio sobre a longe vertigem do faro, e só se calarão quando cansados da lonjura, ou a partir do primeiro pio da coruja, cega dos morcegos que não há, nem dos insectos que deixaram de acreditar que cada lâmpada acesa na rua é a lua que os guia, e por isso a coruja naquela viela onde os gatos seguram a gula entre o lixo, com as antenas dos seus bigodes percebendo a oportunidade dos roedores, é a coruja, com diferente instinto e reflexo, quem leva o rato curioso para o topo dos telhados, sempre piando para continuar convencendo avós que piar assim durante a noite é certo sinal de mau agoiro. Estão preparadas as camas para os suspiros e os grunhidos com que teimam os casais de que domingo é como qualquer outro dia, manhã, tarde ou noite, hoje não será diferente, quando a diferença é nunca suspirarem ou grunhirem nos outros dias, manhãs, tardes ou noites, e então transpiram hoje os corpos para exorcizar o agoiro da véspera do trabalho, resultando numa insone madrugada entre a mesma claridade dos aparatos de tv ou os telemóveis aguentados até ao matutino despertar, que é sempre uma pressa para enfrentar o que o dia seguinte tem entre o exasperado e a resignação de renovadas jornas. Cada jorna com a sua véspera, cada jorna com os gatos rabo de fora sob os contentores do lixo e os cães farejando o desfile de urinas, cada jorna, ou cada uma das vésperas, esperando a outra, porque todo o dia as janelas cicerones antipáticos, até que haja outra noite, geralmente são cinco, para cada um dos cinco dias serão as mesmas cinco noites, e a coruja, semeando maus agoiros no cimo dos telhados, tanto lhe faz se o dia é o de ontem, se a noite é a de hoje, nunca preocupada com a manhã, muito menos se é véspera do que quer que venha a ser. Quando clarear, luz menos densa que o televisor ou o aparato móvel, sôfregos de tanta insónia que nenhum gemido ou grunhido fez de sonífero, quando a luz da manhã fizer coro com o despertador que apunhala de sangue a esperança de que a véspera fosse infinda. Quando tudo isso, roam-se de inveja, porque, para mim, hoje ainda é véspera de um repetido sábado, ou prolongado domingo até amanhã; tudo se mede pelos centímetros quadrados da sombra que cada vez mais aumenta, e – já sei – assim que a vossa primeira jorna vos acabar, estarei eu a distender a minha trela para a urina urgente, terei os meus ecrãs verdes de esperança, e adormecerei atrasado, esperando sempre uma nova véspera para voltar aqui, onde tudo isto observo e disto vos digo.

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