gaivotas em terra


Sinto frio. Desde que abri a garrafa de vinho, sinto frio. Nada bebi. Talvez por isso. Traz-me um copo: será bom regressar ao vinho. Escuta o vidro da janela: agulhas batidas, não ouves? E os telhados, como que chorando sobre o chão dos pátios, das calçadas. Do lado do mar vieram os gritos das gaivotas como mensageiras da tradicional tempestade no mar quando elas em terra.

Mas estas gaivotas trazem a fome: o mar já não é

(já não é o mar)

de antigamente. Sequer há traineiras que colham fruto tímido do rio, da foz, da ligeira distância da costa. Por isso as gaivotas, especialmente hoje, sejam mais aves terrenas, com cegueira de olhos e olfacto, preferindo as coloridas e mal-cheirosas lixeiras urbanas.

E o outono é esta circunstância cinza com aroma a folhas caídas e molhadas. Caído e húmido é a forma com que um poema se resolve na esperança de uma garrafa de vinho, tenuemente aberta e bebida.

Menos incómoda é a boca seca e áspera como cortiça. Atende com disciplina e obediente ao cérebro que se aguenta cansado na formulação de um retorno. Espera-se que se faça noite, e que a almofada da cama acolha o turbilhão com que o poeta

(essa gaivota)

possa dormir, promiscuamente, junto das palavras que não o largam. Essas palavras, cruéis de tanta infidelidade. Pudessem desfazer-se como as folhas mortas das árvores, sonha o poeta recorrentemente, e talvez

(talvez uma palavra medonha, de bico amarelo, plumagem branca com voos cinza, guinchando no céu a planar circularmente sobre aqui, enquanto, finalmente, se enche o copo)

e talvez não fossem necessários papel e tinta para vomitar as angústias de dizer o que há para ser dito e não saber como.

A boca, a língua, também a garganta, pela madrugada aliviadas quando saciadas de água

(água de um rio frio)

que afastam as insidiosas palavras para o dia seguinte. Talvez algumas, naufragadas, sucumbam, morram.

Sinto frio. Tu não sentes? Acompanha-me neste derradeiro trago, que lá virá a noite, acentuada com a chuva e o olho plúmbeo do céu. Não me sinto capaz de outra coisa que não me render. Deitas-te comigo?


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(foto de autor desconhecido)

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