o mote


Quero um mote. Um mote abstracto, etéreo, a roçar a loucura e o impossível. Quero um mote, e dizer nunca a mesma coisa. Que não sustente razões de alegria ou de tristeza. Que não fale do que é feito o ar; sequer do tempo, nas suas variantes. Que não seja eu, não sejas tu. Um mote que diga alguém, alguém que não é e pode ser qualquer coisa. Ou coisa qualquer que se assemelhe a alguém sem o ser. Não quero pedras, não quero aguarelas, não quero referências, livros, filmes, nomes, lugares, cidades e países. Quero um mote sobre o que não há mas que existe. Ou, havendo, que não se saiba que exista nem onde se esconde.

E quero mais nada se nada não for. Pois que, por querer algo, e o estar pedindo, é pensar naquilo que não quero, nenhum mote usado. De que me serve um mote do mundo se o mundo está reduzido ao que é ascendente e descendente, sem ordem indicada? Importa-me pouco as palavras. As tuas, as minhas, e as dos outros ainda menos: nada. Vais pensar? Ilustrar a loucura, propões. Qual, de quem, de onde? O que é? Não. Vomito loucura quando penso que devo colocar no mundo palavras que se envaidecem.

As palavras são obscenas e vaidosas quando querem. Sejam eruditas ou vernaculares, mesmo quando tão matematicamente introduzidas. Enfadonhas por tanta vaidade. Vão ao belo, vão ao quotidiano, vão ao grotesco. Sempre vaidosas, vaidosamente insidiosas, insidiosamente obscenas. Ainda que me mije todo e o diga, solenemente: aqui me mijei. Perfeito. Aplausos. E não sai ele daqui sem acenos vários. Confetes e serpentinas, fogo preso, noite de copos chocando, muito falatório. TV, rádio e jornais! Risos daqui e dacolá. A glorificação: ele sabe, ele faz, ele consegue, ele está para além. Ele mijou.

Quero a imperfeição. Chão lascado por minhocas e onde tropecem galinhas com fome e ratos sem a curiosidade do queijo. Abruptas pedras atiradas à superfície pela ingratidão dos eucaliptos. Os morcegos em conservas filológicas nos cafés da periferia, depois de expulsarem, à força do medo provocado pelo batimento das suas asas mil vezes num minuto, os consumidores de bagaço e licores. E conservam, conservam noite fora, cegos de guinchos, absurdos de ouvido.

Não me interessa a patetice, povoar a parra do vinho com o piolho do indizível. Repara, porém, que não é também o dizível que procuro. Quero apenas palavrear, quero conservar o que não é conversado. Como as toupeiras a fazer túneis imagináveis, sofridas de tinha e cambaleando a futura morte. E, ainda assim, sonhando com suas garras e dentes dentro da terra, esgravatando, para sentirem que hão-de estar à superfície na sua hora. Onde há uma enxada carrasco, e dentes carnívoros, de muito riso, entre enorme estrume e raízes cortadas de verde.

Pisca o olho quem não sabe como é procurar, encher as unhas de nojo e lixo, o que não existe e se deseja tanto que exista. Ir por um caminho, cumprimentar as pessoas, e saber que esse caminho e essas pessoas são restos de escombros, que são nada e nunca nada serão, nem caminho nem pessoas, apenas pedras que doem sob os pés, nas pustulentas feridas que nos faz fugir pelo receio da náusea ao imundo cheiro. Ver as pessoas sorrindo e alegres ou chorando e tristes. E são apenas fedor. Nego dizer que isso seja do mundo podre. Se há mundo podre eu podre também, que cá estou, como tu, como os outros.

Apenas quero um mote. Qualquer coisa não circular, somente um ponto de partida onde não se chegue a lugar algum. Um ponto de partida onde se chegue a lugar nenhum. Um ponto de partida de onde nada parte, nem nada fica, nada vive, nada morre. Quero um mote. Quero uma palavra quase (quase) inventada (inteligível, mas tosca). Semelhante a morte, ou seja: quero deitar a morrer tudo o que nunca esteve cá dentro. E ser imbecil. O maior dos imbecis, mas diferente, por ser rei entre eles. Como será o rei dos imbecis? Irá nu e, morto, logo posto?

Ah! Interjeição! Que me livres do lugar-comum do que até aqui disse! Odeio, não quero clichés, lugares-comuns, nem o comum lugar onde me sento num jardim a abafar erros lexicais, gramaticais e os de circunstância, com a borracha dos imberbes estudantes! Não, leva-me aonde os erros são leis e as leis são excepções! Ou abstrações. Também nada, nem reticência alguma, de qualquer retórica.

Quero um mote impossível, foi o que disse ao princípio… e por falar em princípio: rejeito algo que expire o fim. Não há objecto nem objectivo. Concedo o abjecto, desde que nunca – nunca – suspire aliviado de lá-vai-ele-contente-com-a-ideia-que-lhe-dei-ponto-final. Quero mote de não ficar contente. Quero mote que não dê alívio. E também que não faça temer. Se ideia alguma não tens para me dar: nesse caso, já fui, e nenhuma vez falei. Então, também, nenhuma vez falhei.


_
foto de Ilya Zubov

Comentários