quando escreves

são precisas muitas mulheres para esquecer uma mulher inteligente
António Lobo Antunes

Tínhamos a cama improvisada sobre a pedra, e cada curva do teu corpo me servia de almofada. Dentro, a poesia tentava urdir. No ambiente, a música embalava-nos. Em ti via os sonhos, os teus e os meus. Por tua vontade, cada parábola minha teria o cuidado de severa curadoria, como se coubessem as minhas palavras numa argila fóssil que toda a humanidade vindoura pudesse testemunhar. E eu, tão parco, a minha verve tão pobre como o meu corpo dentro do teu. Tudo me explicavas, tudo me explicaste. Eu quis ser mais do que podia, sabia-o. Fingira que teria como vantagem os clichés para o que me faltava de técnica. E dizia os poemas mal urdidos como quando te acariciava com a língua na vez do corpo que teimava medíocre. Para ti, era tudo uma questão de autor, e de como se amava. Como amar incondicionalmente. O chão duro, pedra que nunca poderia servir de colchão para o teu corpo dorido sob cada investida minha. Meneavas enquanto gemias, ora de dor e de espasmo, ora de desejo e de espanto. O teu olhar oblíquo sobre as estantes, conferindo que aquele era o lugar certo, eu era o homem que escrevia certo, a música pianíssima como ambiente certo. Mas não era. Nem como eu queria, nem como imaginavas. E disso, por discernimento, quis que entendesses, anos mais tarde, quão fraco eu sempre fui. Não quiseste entender, fechaste os ouvidos. E foste argumentando que deitar o corpo sobre a pedra é tão só uma predisposição física, como ter o corpo nas entrelinhas. E que amar não é só subir aos céus, há que estar entre o humo da terra, sentir-lhe a textura e os declives, atentar nas armadilhas que a natureza, sem querer, nos presenteia. E que a poesia, a partir da terra, rejeita o que é tão fácil de entender. Que voar nada tem de especial, o engenho está em experimentar como se voa. Eu apenas estendi as minhas gargalhadas, como quem vocifera e intercala com o sobrolho carregado de impropérios, completamente desacreditado das tuas máximas. Desistida, desistente e contraditória, acabaste por partir, a dizeres: até outro dia! E eu acabei lamentando sobre o que pudéssemos ser e nunca fomos. Quis, porém, antecipar, logo imediatamente após a tua saída, quando seria esse outro dia. Sem resposta quão imediata, vivi as outras como quem urdira poemas fracos. Dizia, também desistido e dando aos ombros, que isso bastava. Desenganado sobre o além de ti, o além de mim. Resumidamente, deixei de querer saber. Porque, entre a mediocridade, eu sabia que era rei de um só olho em terra de cegas. Até que um poema teu chegou até mim, e disse. De ti, de mim, do mundo, sem ser um poema sobre o que és, quem sou, sequer de que é feito o mundo. Não pude fazer-me desentendido. O teu poema desfez a pala que tinha. Olhar de frente, com os dois olhos sãos: eis a providência. O marasmo em que vivi não me acautelara. Aquele teu «até outro dia» fora, para mim, um adeus definitivo. E eu quis esquecer-te entre as que nem aos teus calcanhares podiam sequer entender os pés de quem, por terrena humanidade, sempre os teve bem assentes na terra. Mas, terei lido o teu poema tarde demais? Se assim não foi, diz-me: ainda é o teu poema sobre mim, sobre ti, sobre este mundo? Estarás abrindo as tuas asas à redenção?


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foto de Igor Makovsky

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