na vez de ti
Vou sempre querer tudo de ti.
Não percebes quanto assim te quero, mas, sem o saberes, é tanto o que me tens dado. Porque, entende bem, não preciso de qualquer tipo de pontuação, só a forma como as palavras abrem os elos para um espaço só meu, uma respiração do ar que a grafia apenas concebe nas entrelinhas. Por essa condição é que deixo com que as palavras
as mais puras
se façam de mim para escrever-te desenfreadamente. Aliás, isto não é só escrever-te. É com argumentos de engenho subvertido: escrevo nesta demanda de lembrar o passado como um perfume agarrado ao algodão da roupa, ou como era a brisa que emanava do rio até que, filtrada pelos teus cabelos, e chegada ao meu olfacto, eu pudesse cercar aquela ondulação, crispado o mesmo rio em pequenas ondas como as crinas dos cavalos que se querem domados.
Hoje, ainda sei entender se é nesse perfume que estou, quando salivo o mel das pequenas flores silvestres em fim de estação, as tuas predilectas. Porque, afinal, tu dás-me tudo sem saberes como o dás: dos teus olhos observando o horizonte, o amanhã, talvez nessa altura venhas
(imagino tantas as vezes),
mas não me rala quando não vens, pois não é credível sustentar o que agora sinto a imaginar o futuro.
Então, outras tantas vezes foste tu quando esforcei a imaginação para te ter nos braços e, dessas vezes, eras tu numa outra qualquer. Outra a quem beijei, outra a quem desnudei, outra a quem jurei a patética intenção da sala mobilada com requinte, o quarto, a nossa cama com a brejeirice das colchas bordadas sobre o leito onde nos dávamos. Lembro: quando nelas nos deitávamos, tu enrubescida de vergonha e pudor, pelas furiosas investidas da madeira contra o soalho de outra madeira que os nossos corpos produziam, e pudessem incomodar os vizinhos menos ocupados.
Então,
dizia,
hoje, essas vezes são as que posso ter com qualquer outra. Porém, nunca soubeste ver-te nessoutras reflectida, pelo que, após a desenfreada coragem de te querer nelas, quando as enxoto
– Dá-me um beijo
– Estou cansado
– Gostas de mim?
– Sim
– Abraça-me
– Estou muito suado
– Está bem
– Tenho de ir embora, desculpa
– Liga-me!
corro para as fotografias onde me sobraste, desejando a holografia do rio crispado, consciente da minha memória de cinematógrafo a estilizar tudo o que foi de mim contigo.
Não preciso de qualquer pontuação amarga nas palavras que, mal se erguem, já tu as ceifas. Sei distinguir, compreendes? Que nunca nada será como antes – acabaste por dizê-lo no derradeiro dia desse nosso passado, tão cansada estavas. Acontece que estou permanentemente a saborear os momentos que foram antes do que acabamos por sermos depois disso, e esses momentos aqui os percebo, perfilados como palavras que pontuação nenhuma requerem, para que eu saiba de tudo o que és hoje.
Eu só me tenho a mim, entre estas paredes, sobrando entre as sombras disso tudo. Mas quero que saibas que conheço cada segredo
repara
cada segredo que um mero fio do teu cabelo esconde. Qualquer homem, a quem agora porventura dizes amar, pode perscrutar em toda a tua melena os seus segredos na intenção de conceberem o que és, como és. Em vão, e coitado, sai desse exercício ora iludido, ora desiludido. Porque não sabe que só a água doce de um rio crispado pode dizer tudo, cada onda uma entrelinha para construir o signo de que és feita.
Os enganos desses que te vão querendo e a quem concedes uma ligeira pretensão: pobres deles, pobres que ficam de ti. Comigo não foi nem ainda é assim, mesmo havendo este espaço de tempo que nos fez separados. Mas devo dizer que, mesmo assim, me reconheço nessoutros que exploras. Sempre foste muito reticente, quando os teus sonhos ditos em voz alta podiam aniquilar quem, por canseira, te ouvia.
Eu ouvia-te, a maior parte das vezes calado, mas sem me cansar. Nada dizendo, só te ouvia, e fui registando. Portanto, tudo que agora quero de ti é que grites, sobre este que sonegaste e ainda fazes por afastar, é quem realmente ainda amas e a quem desenfreadamente queres de volta.
Conforme eu sugiro às minhas outras: o que têm de vestir, como se perfumam, quando têm de beber comigo a comemorar cada mês, cada equinócio, cada solstício, cada ano. E elas, desiludidas, ao subentenderem que apenas têm tudo de mim quando estão na vez de ti, dão um passo
em frente ou atrás, não me interessa,
e finalmente me deixam sossegado, para me abeirar de ti na cama e beijar-te de leve o pescoço, já quando dormes.
_
foto de Alexander Savlukov
Comentários
Enviar um comentário