eviterno
Podias ensinar-nos como, verdadeira e delicadamente, se colhem as flores. Ou explicar por que temos de engolir cataclismos desnecessários. Os patos seguem em fila nas lagoas artificiais que fizemos para nossa distracção, e exclamamos embevecidos: Oh, que engraçado!, quando não reagimos assim se enfiados numa qualquer fila humana. Sabes, desconfio desse embevecimento. Como desconfio dos nossos espelhos. Que reflexos devolvem? Estamos confortáveis debaixo dos nossos telhados quando fustiga a chuva matutina, ou queima o sol durante a tarde. Debaixo dos nossos telhados, acidificados pelos dejectos das gaivotas e dos pombos. São como ratos!, vamos resmungando. Não seremos nós, entre nós, piores do que gaivotas, pombos e ratos? Dejectando e acidificando as nossas vidas? Vêem-se agora tantos ratos – cada vez há mais ratos e ratas, ratazanas e ratazões, que detestam filas, preferem passar uns por cima dos outros, ignorando a fila que os gatos lhes deitam. Bem que podias ensinar-nos como se evitam cataclismos. Ou explicar por que murcham as flores tão desnecessariamente. Se nos dizes que é apenas para que medre o fruto, vamos amuar. E sabemos que não suportas crianças amuadas na tua vida, como essas a quem deixas que, em teu nome, sejam mortas, feitas mártires necessárias para explicar o teu mistério, o teu milagre, a tua glória. E a tua heteronomia. Porque tens sido o mesmo com tantas faces! Destruíste Babel por se assemelhar a ti! E não suportas que te contradigam, nas orações e súplicas pela tua misericórdia, e muito menos os que rangem os dentes por nunca ou já não acreditarem em ti. Queres os teus ensinamentos eviternos, como tu te ostentas perante a nossa condição de meros e descartáveis mortais. E concedes o nosso livre-arbítrio, dizes que o fizeste por amor, mas não há nisso amor algum, senão o teu secular egoísmo. Não culpes qualquer serpente passada, nem te dê gozo voltar a ofender sequer a mulher, como qualquer costela colhida ao acaso. A culpa é tua. Somos assim por tua tão grande culpa. Só por isso és eviterno: porque a nossa história assim te condena.
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imagem: detalhe do tecto Capela Sistina, por Michelangelo
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