retórica


Quantas vezes escarneceste do brilho da noite, refugiando-te nesse casulo onde a solidão ensombra com a envergadura das suas asas negras; quantas vezes contaste os copos vazios poisados delicadamente sobre o veludo dos teus desejos anunciando as ausências observadas pelo teu olhar quebrantado; quantas vezes quiseste rasgar o linho dos lençóis e encher o nada com as plumas da consternação; por quantas noites ficaste ouvindo as distâncias que te lembram a incerteza dos afectos? Diz-me: quantas vezes te quiseste apartado da vida porque a vida te doía, dilacerando-te o corpo; quantas vezes mordeste, febril e selvagem, os teus dedos apertados de inquietação; quantas foram as vezes que ao espelho cuspiste as chuvas e te acomodaste como toupeira hibernando até ao eclodir da primavera? Diz-me quantas vezes quiseste ir em frente e nem um metro deste na caminhada, ainda que estugasses o passo? Com que esforço quiseste empalar a solidão por não veres o sorriso de um beijo que te saudasse um bom dia, quantas vezes? Quantas vezes te obrigaste a colocar a terra como firmamento e tombaste perante o seu peso eterno? Diz-me quantas vezes escreveste a sangue a palavra amor e somaste as cinzas do desencontro? Muitas, poucas? Diz-me: porque te doem as tuas lágrimas, e como doem as lágrimas dos outros que não te vêem?


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pintura de Roberto Ferri

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