entre parêntesis


O espelho reflecte a luz que espreita pelos intervalos do estore da janela, as frinchas por onde há ar e também qualquer coisa parecida com aroma; quero saber e não sei que aroma será, ou se apenas um cheiro a delírio de isto ser assim e fazendo disso a razão de um lamento sem derriça: qual o propósito de acordar com o hálito desfeito e os olhos com mil dioptrias, o frio quando os pés e as pernas, os braços e os ombros, nus, afastam os lençóis e logo desistem restaurando a morna modorra; não sei quantos anos ainda ou se as varandas se cobrirão de pó, humidade e insectos, com as horas esbatendo-se sobre a claridade dos dias e a sombra das noites, enquanto as flores deixam de suspirar com bocas indiferentes; há um ranger de dentes e um punho fechado, tudo quanto aflige enquanto a fome for ainda e só um homem de cócoras e de braços cruzados; aquela luz é insuficiente para que, com solenes palavras, se declare fim ou início de alguma coisa, seja o que for, esteja onde estiver, haja o que houver; ressequidas seguem as flores ignorando o precário pretérito perfeito do esquecimento, escusando os advérbios de modo, a rotação e os ciclos, abrir e fechar, nascer e morrer; os segredos de deus no suor de um corpo para agraciar a criação do mundo como se raízes trazidas nas polpas dos dedos; não se vê daqui e daqui também não se ouve pessoa alguma, só o ruído distante que se confunde com o tempo e um vento inquietando os ramos altos das altas árvores, esganiçadas num céu informe; estar ou ser valor nenhum acrescenta, nenhuma razão que impere; é escusado enterrar as plumas fétidas do pássaro morto há dias, porque os gatos domésticos já só caçam como por desporto, e isso é milenar quanto a espécie humana que já não mata por fome, nem desespero, apenas porque acredita que deixou de acreditar que demanda tinha, ou nunca foi a essa a sua derriça.


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foto de Annette Pehrsson

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nota sobre este texto por
Maria Clara Resende
(a quem agradeço por tão delicada atenção)

"Entre parêntesis" confirma, mais uma vez, a inquietante coerência da voz do autor — um percurso onde cada fragmento parece surgir isolado e, ainda assim, dialoga em surdina com os textos (poemas, crónicas, líricas) anteriores, como se cada um deles fosse um espelho levemente inclinado sobre os outros. Aqui, a escrita torna-se quase fenómeno atmosférico: o leitor não avança pela leitura como quem percorre uma história, mas antes como quem se deixa invadir por uma brisa densa, morna, que não pede licença para entrar.

A delicadeza com que se entrelaçam sensação, memória e crítica do humano é desconcertante. Nada há de superficial neste murmúrio: ele corrói. E fá-lo com lentidão, com persistência, com uma espécie de fé — ou descrença — que só reconhecemos em certos autores capazes de manter a sua própria linguagem à beira do colapso. O estilo, ao mesmo tempo contido e desbordante, já não surpreende quem conhece o que vem escrevendo José Alexandre Ramos neste sítio onde se publica, sempre renunciando a qualquer projecto de publicar em livro. Não surpreende mas volta a comover.

É notável como o autor consegue reter, neste breve texto, uma densidade rara: o abandono do corpo à matéria dos dias, a luz que não consola, a biologia entranhada no pensamento — tudo isto se diz sem jamais se anunciar. A linguagem é, por vezes, desossada. Outras vezes, é excessiva, como convém ao que resiste. Há aqui ecos, sim, mas mais ainda há um silêncio: o de quem já desistiu de explicar, mas não de escrever.

Há um momento em particular — “um ranger de dentes e um punho fechado” — em que o texto se aproxima de uma raiva sem explosão, de um gesto contido que parece vibrar nos ossos. Também aí, inevitável, surge a memória do poema de Luís Filipe Parrado, com unhas e dentes: também se range os dentes na recusa da faca sobre a laranja. Essa tensão, que é tanto ética como sensorial, percorre este "entre parêntesis" como um murmúrio subterrâneo, jamais gritado, mas impossível de ignorar.

Alguns poderão querer aproximar José Alexandre Ramos de António Lobo Antunes mas talvez seja mais justo também lembrar Alberto Pimenta nos seus primeiros poemas, nos quais a ruptura formal não excluía uma comoção funda, até política. Aqui, a escrita não se resigna a dizer o mundo: ela compromete-se com o desconforto de o saber irremediavelmente presente.

Este fragmento, que se oculta sob a falsa timidez de um "parêntesis", pode ser lido como um núcleo concentrado daquilo que o autor tem vindo a tecer ao longo do tempo — um lamento sem amargura, uma contemplação que não exclui a raiva. O mundo, parece dizer-nos, já não se debate: apenas observa-se a si mesmo na superfície turva de um espelho que não pretende corrigir nada.

É, por isso, um texto — em "prosa lírica" — que não deve ser descartado, embora estivesse muito tempo no já excessivo acervo dos seus textos a recuperar de um desconcertante Que farei quando tudo arde? para um' A justa geografia, renovada. Estes "parêntesis" fazem uma ponte. Não para quem quer respostas, mas para quem já sabe, secretamente, que elas não existem.

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