entre parêntesis
"Entre parêntesis" confirma, mais uma vez, a inquietante coerência da voz do autor — um percurso onde cada fragmento parece surgir isolado e, ainda assim, dialoga em surdina com os textos (poemas, crónicas, líricas) anteriores, como se cada um deles fosse um espelho levemente inclinado sobre os outros. Aqui, a escrita torna-se quase fenómeno atmosférico: o leitor não avança pela leitura como quem percorre uma história, mas antes como quem se deixa invadir por uma brisa densa, morna, que não pede licença para entrar.
A delicadeza com que se entrelaçam sensação, memória e crítica do humano é desconcertante. Nada há de superficial neste murmúrio: ele corrói. E fá-lo com lentidão, com persistência, com uma espécie de fé — ou descrença — que só reconhecemos em certos autores capazes de manter a sua própria linguagem à beira do colapso. O estilo, ao mesmo tempo contido e desbordante, já não surpreende quem conhece o que vem escrevendo José Alexandre Ramos neste sítio onde se publica, sempre renunciando a qualquer projecto de publicar em livro. Não surpreende mas volta a comover.
É notável como o autor consegue reter, neste breve texto, uma densidade rara: o abandono do corpo à matéria dos dias, a luz que não consola, a biologia entranhada no pensamento — tudo isto se diz sem jamais se anunciar. A linguagem é, por vezes, desossada. Outras vezes, é excessiva, como convém ao que resiste. Há aqui ecos, sim, mas mais ainda há um silêncio: o de quem já desistiu de explicar, mas não de escrever.
Há um momento em particular — “um ranger de dentes e um punho fechado” — em que o texto se aproxima de uma raiva sem explosão, de um gesto contido que parece vibrar nos ossos. Também aí, inevitável, surge a memória do poema de Luís Filipe Parrado, com unhas e dentes: também se range os dentes na recusa da faca sobre a laranja. Essa tensão, que é tanto ética como sensorial, percorre este "entre parêntesis" como um murmúrio subterrâneo, jamais gritado, mas impossível de ignorar.
Alguns poderão querer aproximar José Alexandre Ramos de António Lobo Antunes mas talvez seja mais justo também lembrar Alberto Pimenta nos seus primeiros poemas, nos quais a ruptura formal não excluía uma comoção funda, até política. Aqui, a escrita não se resigna a dizer o mundo: ela compromete-se com o desconforto de o saber irremediavelmente presente.
Este fragmento, que se oculta sob a falsa timidez de um "parêntesis", pode ser lido como um núcleo concentrado daquilo que o autor tem vindo a tecer ao longo do tempo — um lamento sem amargura, uma contemplação que não exclui a raiva. O mundo, parece dizer-nos, já não se debate: apenas observa-se a si mesmo na superfície turva de um espelho que não pretende corrigir nada.
É, por isso, um texto — em "prosa lírica" — que não deve ser descartado, embora estivesse muito tempo no já excessivo acervo dos seus textos a recuperar de um desconcertante Que farei quando tudo arde? para um' A justa geografia, renovada. Estes "parêntesis" fazem uma ponte. Não para quem quer respostas, mas para quem já sabe, secretamente, que elas não existem.
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