a tua morte a minha viuvez
O verão deve ter chegado para ficar, disse a rádio, e os ramos das árvores não descansam fustigados pelo vento. O céu lembra-me as tardes ainda mornas de outubro quando o sofá me recebia de chá nas pontas dos dedos, os óculos no rosto e um livro volumoso, de capa nova, o perfume denso do papel. Do jazz ao fim da tarde durante um banho de imersão. Das horas preenchidas de cigarro a diluir a noite chuvosa. Lembra-me tudo
(talvez ainda a tua morte, ou a minha viuvez)
menos que seja o verão chegado para ficar. Se as paredes dos prédios são cinzentas, mais plúmbeo me parece o céu. E as gruas paradas, pacientes com a rudeza do vento. Bebo vinho, para dissipar o sabor a terra
(da minha viuvez, da tua morte?)
que a chuva tem. Bebo para buscar o travo do fruto vermelho que não vi amadurecer. Algures, não aqui, não hoje, há sol e braços nus, vestes leves. E por isso a rádio com sorrisos para lá dos transístores. Porém, aqui
(na tua morte, na minha viuvez)
não veio o verão. Chá e mantas. Cigarros. Janelas com vento nos ramos das árvores. Os óculos, e o livro com todas as páginas que faltam para completar a minha finitude.
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