missiva
Deixaste-me um verso teu, Helena, como quem remete telegrama urgente pela frincha inferior da porta, batendo duas vezes com o nó dos dedos, a fazer de campainha e que eu nunca ouço. Enquanto eu arder assim nesta modorra que não sei por onde começou nem que fim virá a ter, não ouço, não vejo, nem sinto seja o que for, e não sei nada da tua missiva. E tu, pelo silêncio instalado, entenderás que urgência nenhuma há no meu querer saber de ti e do mundo.
Deixaste-me também uma fotografia tua onde desnudas o peito, no intuito de eu compreender que te ofereceres como mãe de leite a um afogado
la(c)tente
sinal de que, sem questão alimentar, desejas delicada língua e sucção dos mamilos. É nisso que escondes a materialização da missiva que remetes. Por te conhecer tão bem.
Os delírios dão-me no olfacto um cheiro insistente a hortelã, eucalipto e menta, que não me lembra nada o teu corpo, mas a infância. Recorro aos morangos para me aguentar da ausência da matura fruta do teu baixo-ventre. Fico a sorrir enquanto tinjo de vermelho os lençóis e digo
- Há sangue
o teu sangue a pulsar nas tuas veias. Dirás no teu verso:
sangue da lenta combustão do desejo
mas só sou eu divagando, já que não sei o que diz o teu bilhete, frincha adentro da porta deste quarto de hotel.
Se, meio-desperto e cambaleante, decidir notar com falsa surpresa no pedaço de papel fino e dobrado, com a fotografia dentro, entre o pó do chão, vou queixar-me de dores lombares ao agachar-me para o apanhar, uma tontura, talvez, subindo de novo na vertical, e lerei o que escreveste.
Estou certo, ou quase
(quase certo porque nunca fui de prometer fosse o que fosse, quase certo porque nunca fui capaz de acreditar no teu génio poético)
que, ao ler o verso que me remetes, terei o mote para uma epopeia. De um supremo lirismo tal que só tu e eu saberemos interpretar.
Helena, Helena. Que modorra é esta? Levantar-me-ás o ânimo com os prometidos sumos da tua fruta? A tarde acentua a preguiça de nem uma ligeira quadra querer escrever, muito menos tentar a primeira sílaba daquela epopeia. Ficará o teu bilhete no chão. Uma pequena brisa talvez o consiga empurrar para o canto. Quando os serviços de limpeza do hotel entrarem, varrerão a tua missiva para o lixo reciclável. Ou talvez não.
Despertei um poucochinho, Helena, mas continuo a não ouvir, ver, nem sentir seja o que for, e fiquei afinal por não saber nada da tua missiva. E tu, pelo silêncio instalado, entendeste que nenhuma urgência houve no meu querer saber de ti e do mundo. Pelo que arrumaste pena e papel, amuando. Mas é preferível assim: a imaginação e os sonhos dão-nos conta do recado, sempre deram. Melhor do que missivas.
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foto de Eric Burkhanaev
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