voou
De costas e com medo: invejava as gaivotas que pairavam sobre ele, gritando o perigo da falésia. Tinha todos os músculos tensos e o rosto pálido, agreste. Os olhos fechados como quando o sol dói.
- Voa…
Um vento de norte cortou-lhe a respiração. Tomou dois passos atrás, retesado de medo e espanto. Abriu por instantes os olhos a fitar ainda o mundo de frente.
- Como será?...
Lembrou tudo: os cigarros esquecidos no bolso, o post-it no frigorífico desenhando a despedida, o copo de uísque que não chegou a beber. O molho de chaves balouçando na fechadura da porta que afinal não fechou. O carro coberto de pó e rodas enlameadas que não quis que o acompanhasse.
Lembrou os rostos e as vozes da véspera. Os suores que vieram de madrugada. A insónia. A boa noite entusiasmada dos amigos, o bom dia indiferente da dona da pastelaria onde bebera o café matinal.
Lembrou as notícias do jornal que lera com a ânsia da premeditação e o fatalismo dos sinais.
Lembrou-se dela, obrigada a voar meses antes. Mas estava ali, afinal, sentiu que ela lhe tocava a mão. Esperava-o.
- Como serei?...
Uma gaivota rasou-lhe o rosto, de bico estridente. Fechou os olhos, a esquecer o mundo de frente. Mas avançava de costas, como que recuando a um princípio de nada. Tomou mais dois passos atrás. Ficou lívido: nas costas sentia o rugido do mar como uma boca de inferno escancarada.
- Voa…
Não se deu conta que no último passo atrás largava o chão. Sentiu a gravidade. Voou.
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(imagem gerada por IA)
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