tentação de assédio


Fica-te bem a bijutaria que compras nas lojinhas da galeria comercial, na correria entre um livro escolhido à sorte no quiosque e um hambúrguer regado a coca-cola, antes de regressares à papelada do escritório onde te espero como um rapazola tímido borbulhando da pele devido aos assaltos hormonais e a frustrada vontade imensa de mudar o mundo e todos. Não sou um rapazola, nem me borbulha a pele, e as hormonas… sei lá, tenho o corpo numa grande confusão. Quanto à vontade de mudar o mundo e todos já deixei isso para a rapaziada da tua idade… Contudo, contigo, porto-me como se fosse esse rapazola

(entre tantos outros que deves conhecer assim)

concebendo-te como se pudesses ser a primeira e única mulher que havia de reparar em mim e me aconchegar no colo.

A minha mãe foi a mulher mais distante de mim em toda a minha vida, coisa que muita gente não compreende. Dirão alguns: outros tempos!, e concedo que nesse outrora pudessem as pessoas ser mais rudes, mas nem tanto. Eu era um miúdo de cinco ou seis anos que a procurava com os olhos esbugalhados de carência, ao vê-la afastar-se todos os dias numa camioneta para ir limpar escadas, deixando-me sem um beijo, um pequeno afago, só a promessa de

- Volto logo

acrescentando apenas

- Porta-te bem, rapaz, faz o que a avó disser

quando o que a minha avó dizia era apenas

- Chega-me aquela garrafinha, ganapo

e eu obedecia, enjoado com o cheiro da aguardente

- Achaques da velhice

dizia-me ela, soltando a rolha. A minha avó era uma

mulher?

não, uma velha, sim, apenas uma pessoa assexuada e velha. Não a via como à minha mãe sequer, era apenas aquela pessoa que dormitava após o alívio dos achaques, e eu tardes longe dela, longe da casa, a procurar girinos nas ribeiras, gafanhotos nas couves, a queimar tempo até que a minha mãe regressasse. De maneira que este sentimento é

(um bocadinho)

parecido, ou seja: os olhos esbugalhados do miúdo que fui continuam iguais, sempre à procura de um afago e, quando te vi pela primeira vez, percebi que podias ser quem pudesse reparar no carente em mim e que isso não te incomodasse. Que fosses uma jovem mulher que não se importasse de ver os papéis invertidos – as mulheres da minha idade dizem precisar de um homem que as proteja

(que terá acontecido com o pai de cada uma delas?)

e entendo isso, porque o mesmo se passa comigo, queria uma mulher sem fraquezas, capaz de me tirar da carência e dar guarida aos olhos esbugalhados do miúdo que cresceu, mas com o mesmo propósito da proteção que as mulheres da minha idade procuram nos homens.

Aqui sentado, observando-te, relembro tudo isto assim, em catadupa. A merda da psicologia barata que a internet mais os programas de tv madrugada dentro a dar conselhos miraculosos como se todos fôssemos iguais… olha o signo do zodíaco, olha os antecedentes, olha os recalcamentos, olha esta história real

- Partilho isto aqui na televisão para que sirva de exemplo para outros

e, enfim, é isto, andamos anos e anos a carregar fardos de uma infância esmagada ou mal resolvida por desejos recalcados, e acabamos por crescer com a bandeirinha do ai-coitadinho-de-mim, erguendo-a sempre que nos desvirtuamos do caminho correcto da moral e dos bons costumes.

Nada disto previa eu dizer-te. Veio tudo inesperadamente e em catadupa, depois de observar a bijutaria que trazes ao pescoço, pendurada nos lóbulos de ambas as orelhas ou a tilintar estridentemente nos teus pulsos… E como ficas tão engraçada com isso, e as gargalhadas alarves de miúda que soltas antes do ar sério com que me encararás no escritório entre tanta papelada que me vens dar para assinar.

E eu, que tolice, imaginando firmar a minha assinatura em ti de uma outra forma. Da pior forma, ou seja… daquela forma com que, quase com certeza, te exaltarias e dissesses as coisas que não são verdade, e para que todo o escritório pudesse ouvir. Assim fosse, tudo terminaria, senão comigo com um processo disciplinar, pelo menos a ditar a minha precoce e forçada aposentação.

Só por isso nunca dei o primeiro passo. Pudesse um dia, quando e se conseguisses olhar para mim sem a sensação de que o teu olhar me atravessa como se eu fosse um vidro transparente e limpo. O princípio da velhice é quando reparamos que os mais novos nos olham como se fossemos invisíveis. Sinto que é isso o que sou, um fulano da idade do teu pai, quiçá. E que o teu olhar vai nesse sentido, de ficar indiferente e tão cego à carência que há em mim.

Quando, se não fosse a minha idade

(e o preconceito físico que a idade muito madura acarreta)

eu vestisse como a moda dita, e pudesse seduzir-te com gostos e forma de estar que pudessem condizer com as tuas preferências… então eu teria a certeza de que todos estes meus gestos

(imberbes, mesmo que seja homem de barba rija) 

não se confundiriam com uma tentativa de assédio de um chefe de repartição para com a sua estagiária. E, na próxima sexta-feira, noite de shots entre tsum-tuns de arreliar a cabeça, eu te pudesse ter-te nos meus braços, e todo esse corpo formoso ser um pasto para as minhas carências.


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(imagem gerada por IA)

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