pássaro


Foram tempestades as que tivemos, sim. A semente do amor, que amor teria sem a fúria do vento e das chuvas, emotivas sobre o húmus dos prados sem cultivo? Sob essas emoções, de nós ensarilhados tão difíceis de desatar como se enleiam as silvas trepadeiras e ervas daninhas, fui eu o primeiro corisco de algumas daquelas tempestades, quando me resolvi a pegar na bagagem e tentado por voar para longe, acreditando que, se não o fizesse, talvez me quedasse preso a ti como numa gaiola de saias da mãe. Tu, por outro lado, tão bem contida sem teres pensado em tal, não sabias do feitiço para que, com a mesma fúria que me levou ao crime de pensar deixar-te, pudesses levantar sequer um vento suão. Aninhaste, sossegada, tão-só a verificar solstícios e equinócios.

Sinto que, das mil vezes que voei sob o ar de morna primavera, e por cada galho onde pousei, ofegante a descansar, tudo me pareceu em vão porque cada pássaro sabe sempre onde recolher ao final do dia. Percebi que não havia onde me recolher, ombro ou colo que me sossegasse das dores do esforço. Vi que, daquele modo, estaria sempre de partida sem volta garantida. Então surgiram essas longas passagens em que me viste aturdido sem rumo, e tu aflita a indagar por que te sobraram quatro paredes de silêncio.

Lembrei então que qualquer dos teus encantos, os mesmos que me levaram a ti, pudessem calhar na má sorte de para sempre os perder para um outro, enquanto eu num qualquer galho, sob a chuva, já perdido e arrependido pela pretensão de um voo longo e mais alto do que podia. Não sabem os pássaros das armadilhas que há no humano para prender a beleza singular do seu canto? Sabem, e por isso fogem da presença humana. Porém, um pássaro de gaiola nunca está totalmente precavido: se não é o homem, é um felino, insidioso e à espreita, que lhe cobiça apenas a sumida carne debaixo da plumagem.

Foram tempestades, mas depois veio o sol, trazendo o rebento da semente de dentro da terra para sorrir. Não sou, efectivamente, pássaro de gaiola a lamentar chilreios sobre o tamanho do mundo, dando-o por perdido de conhecer. Tão pouco o pássaro imprudente quando foge pela frincha. Tenho asas para ir adiante, bicando aqui e acolá a semente quando a fome aumenta, e a pequena linha de água fresca entre as sombras quando a sede não se pode adiar. E canto, nos mais altos ramos, canto com a alegria que me resta, os acordes mais perfeitos da liberdade a que sempre almejei. Acontece que ninguém canta a alegria de ser livre para dentro. Quer assobiar ou atirar a voz para diante, ainda que em aturado esforço. Porque só canta quem acredita que há alguém, certamente há sempre alguém, que o estará sempre ouvindo, alguém sempre desejando por o ouvir.


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(foto de autor desconhecido)

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