soalheiro fevereiro
Correste o mais que podias com o pensamento meneando em volta. Toda a neblina junto ao rio fez brilhar a manhã. Sabias, nesse teu retorno esforçado, o que tem a vizinha quando te olha, inaugurando um quarteto de cordas dilatando-te entre as nuvens, e imaginas o seu quarto, cujas cortinas bailam por entre a sua presença e ausência, ambas propositadas. E, à primeira sombra, premeditas que venhas ser tu ali presente para acudir à janela, correndo-a, quando for anunciado o acentuado arrefecimento nocturno.
Cedo ainda seria para tal quando volveste do rio. Vives ares primaveris, sabes que a terra e a tarde tardarão mais que do que foi nos últimos meses, agora enoveladas ambas num circo de cores a rebentar na maré, lá e ali, tão perto enfim, onde o mar ruge. E lembras-te dos momentos em que vias como uma toupeira ancestral, assustada com o mundo carregando o tempo impossível. Antes do sorriso que te saudou daquela janela, todo os dias, desde que nasceu este novo ano. Desde então, toupeira – que patético; o mundo carregando o tempo impossível – que exagero. Fazes poses enquanto carregas o resto do jardim, em rebuliço de torrões duros e húmidos, para o contentor do lixo, a mostrar a tua árdua tarefa. Já que os dias, crescidos, têm sido soalheiros e quentes: tens apetite de renovar tudo.
E ela corresponde, entre sorrisos recortados por detrás das cortinas, que aligeira para observar a tua tarefa de despejar o que não queres para um jardim multi-florido. E a sua mão segue com o pano do pó que sacode, faz o mesmo gesto vezes sem conta a mostrar que ela, ela também quer o mesmo que tu: nenhuma sombra poluta; ligou um difusor a soltar vapores de primaveris odores. Calados ambos, os gestos tácitos de uma estranha comunhão. Entretanto, o almoço. Não saberá a vizinha que o teu foi bem regado, a modo que os teus membros, os teus olhos, a tua postura, anunciassem segura predisposição. Bebes romano, entendendo outra coisa.
A boa metade da tarde fez-se dos mesmos gestos que a manhã tão soalheira. Enfim, recolhes as parcas alfaias quando o sol se inclina e ainda observas a janela onde a vizinha não desistiu. Ela continua também, na mesma labuta doméstica. Já sinalizando o cansaço, sacode os últimos tapetes. Cresceu depressa aquela hora em que algumas sombras pardas suspendem o seu descanso para evoluírem na sedução, ainda morna, do entardecer bruto de fevereiro. É então que te lembras, no duche que te lava da poeira do jardim revolto, que não é ainda primavera, apenas vives o terceiro mês de um inverno peculiar. O mesmo sente a tua vizinha, que agora permanece à janela, com um xaile sobre as costas e acomodando o decote que, horas antes, fazia por exibir.
Confere ela os carros que vão regressando dos seus passeios à beira-mar, e vão enchendo os lugares de parqueamento que durante o dia estiveram vazios. São os outros vizinhos, longe de imaginar o que aquela mulher à janela tanto se esforçou. Longe também de crer que o vizinho – tu –, agora de bruços sobre o muro que o separa da rua, fumando exagerada e longamente o seu cigarro de satisfação, tanto transpirou. Tu e ela observam, vagamente, os movimentos de cada um dessoutros vizinhos que regressaram: abrem portões, retiram bicicletas empoeiradas do tejadilho dos carros, cumprimentam quem ainda surge de passagem, e alguém exclama
- Como se fez mais frio tão depressa!
e volves o olhar para a janela onde a vizinha ainda resiste, observadora como tu do mesmo.
Porém, aquela afirmação fez convencer a vizinha que estar à janela, aberta, seria imprudente. Tanta gripe que mata sei lá quantas pessoas, terá ela ouvido nas notícias da tv. Questionas a tua resiliência, debruçado sobre o muro quando a noite e o frio se acentuam, deixando-te a remoer essa leve nostalgia sobre o dia corrido e tão soalheiro. Olhas outra vez para a janela da vizinha, pronto para um sorriso que queres correspondido, mas acabas por perceber que ela terá ajuizado mais do que tu: recolheu-se, e daquela janela só uma luz inconstante vês. Estará defronte da televisão, concluis. E eu aqui feito parvo, pensas, por sentires que, afinal, já faz mesmo muito frio para continuares debruçado sobre o muro que dá para a rua. Os outros vizinhos já se recolheram, ninguém mais passa. E voltas a lembrar-te daquela toupeira. Que és tu, senão uma toupeira que cede, e mais se enfia nas luras debaixo do solo, farejando, aqui e acolá, as raízes?
Tens sessenta e sete anos, e sabes que muitos outros homens, nos seus quarenta, invejam a tua compleição física. Pensas, mesmo assim, que já és velho demais, embora te digam o contrário. Embora os sorrisos cúmplices da vizinha, dezoito anos mais nova que tu. Ela que, enfim,
(sacodes os ombros enquanto desistes do muro e entras em casa)
parece que quer muito e muito depressa desiste
(a lentidão com que fechas a porta e só vês escuridão).
Na hora em que te preparas para o novo dia que irá nascer em cerca de dez horas, ouves a campainha. Esperas nenhum familiar
(não me apetece a televisão como ela, pensas)
esperas nenhum amigo, que os tens poucos, e os que o são, parece que se esquecem que tu existes, por vezes, tem vezes que, em nada parecendo, nenhum amigo te resta. Queres companhia, queres uma mulher, das mulheres que perdeste em tanto tempo, parece-te
(a campainha soa outra vez)
que já não importas a ninguém
(já vai!);
e quem será, agora? Quem me quer chatear?
Abres a porta, com esse ar de toupeira ancestral que ainda não percebe nada do mundo onde vive, e surge-te, surpreendente, a vizinha com quem namoras tacitamente. Ela na janela, tu nas tuas lides de homem solteiro que não se atreve a outra coisa senão correr junto ao rio pela manhã e cuidar do jardim o resto do dia. Ambos sugerindo coisas do antigamente, embora escuses qualquer referência do antigamente como coisa boa.
- Fiz uma tarte de ananás, e
(aquele sorriso que vias na janela tão próximo)
é uma pena que tenha de comer só eu… O que não é bom, se não quero engordar
(aquele sorriso tão cheio de vergonha)
de maneira que, sem querer incomodar… Desculpe! Quer uma fatia?
A ancestral toupeira em ti, sem aparato de ciência, que Darwin é morto, evoluiu em segundos para um leão faminto de tarte e sorriso cozidos pelo peculiar fermento feminino, fórmula exclusiva de quem assoma à janela nestes tão soalheiros dias de fevereiro.
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(foto de autor desconhecido)
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